terça-feira, 28 de agosto de 2018

O OFÍCIO LITERÁRIO VISTO POR UM MÉDICO


Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
O fazer literário tem muito a ver com a capacidade de realizar uma geometria combinatória entre o funcionamento mental de quem está lendo e, o que está escrito. Não é à toa que os clássicos passam pelo tempo e permanecem jovens e atrativos, ou, que um livro, depois de publicado, seja como um filho emancipado, que toma os mais diversos caminhos. A própria História da humanidade está dividida entre a fase escrita e não escrita.
A escrita literária dá forma àquilo que não possui forma, ofertando sentido ao que é incompreensível, pondo ordem cronológica àquilo que ignora o tempo comum, individualizando a causalidade onde existe a casualidade, oferecendo continuidade onde há apenas contiguidade, impondo harmonia ao caos. Dado ao fato de que, o escritor é humano, não poderá se livrar da tentação de impor ao leitor aquilo que sua razão deseja.
Entretanto, até bem pouco tempo, os textos jornalísticos eram considerados literatura de segunda classe, cabendo a originalidade, na literatura, a gêneros como o romance, a novela, o conto e a poesia. Somente considerava-se literatura quando havia a elaboração estética da linguagem. Todavia, atualmente, apesar da ampliação do conceito de literatura sofrida com os movimentos de vanguarda (reação a modelos literários das gerações anteriores), no mundo acadêmico, muitos permanecem fiéis à antiga classificação de literatura. É compreensível tal cautela, considerando a importância da palavra escrita.
Apesar do texto escrito ser uma tentativa de tornar perene o conhecimento, através de um código de sinais e desenhos que deram origem ao alfabeto, a compreensão da leitura é metafísica. Embora seja materialmente menos perecível, a palavra escrita no papel, no papiro ou em argila, apresenta uma conotação diversa de acordo com variáveis temporais, com a personalidade do leitor, a classe social, a religião, a cultura, a instrução, etc. Assim, como é impossível atravessar o mesmo rio duas vezes exatamente da mesma forma, fato idêntico ocorre com a leitura. As interpretações das Escrituras Sagradas, por exemplo, não se prendem a questões burocráticas.
Não deixa de ser estranha a curiosidade depositada sobre um escritor criativo, sua fonte de inspiração, de onde retira seu material e como consegue impressionar ou despertar emoções esquecidas. Quando não podemos explicar os acontecimentos, pomos a responsabilidade nas mãos dos deuses ou das musas.
Permitam-me citar Sigmund Freud, em Escritores Criativos e Devaneios, pois foi o primeiro a tentar uma explicação dessa curiosidade:
"Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa curiosidade – como o Cardeal que fez uma idêntica indagação a Ariosto – em saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções das quais talvez nem nos julgássemos capazes. Nosso interesse intensifica-se ainda mais pelo fato de que, ao ser interrogado, o escritor não nos oferece uma explicação, ou pelo menos nenhuma satisfatória; e de forma alguma ele é enfraquecido por sabermos que nem a mais clara compreensão interna (insight) dos determinantes de sua escolha de material e da natureza da arte de criação imaginativa em nada irá contribuir para nos tornar escritores criativos. Se ao menos pudéssemos descobrir em nós mesmos ou em nossos semelhantes uma atividade afim à criação literária! Uma investigação dessa atividade nos daria a esperança de obter as primeiras explicações do trabalho criador do escritor. E, na verdade, essa perspectiva é possível (...). Afinal, os próprios escritores criativos gostam de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum, assegurando-nos com muita frequência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o último homem morrerá o último poeta (...)."
Talvez essa interpretação sirva para dois dos fatos da curiosidade humana, em relação à vida privada dos médicos. Quando adoecemos, passamos a depender mais dos outros, ficamos frágeis, subordinados à figura paterna, por isso, voltam ao nosso aparelho mental fantasias do poder do adulto sobre a criança. E como adulto, não desejamos a volta, a submissão à autoridade paterna, representada agora pela figura do médico e dos fatos não compreendidos que conduzem a fantasias infantis.
Voltando aos escritores... falemos um pouco daqueles não criativos. Os que se valem de temas preexistentes, parecem, realmente, diversos daqueles que criam o seu próprio material. Eles são, sem dúvida, muito mais aplaudidos pelos críticos, e geralmente têm maior êxito social. Esses “escritores descritivos” têm, de certa maneira, certa criatividade pelo modo de contar o seu enredo, escolhem o que contar e comentar. É verdade que muitos dos seus comentários, mostram coisas e fatos não avistados por vários leitores.
Entretanto, de uma maneira geral, a história imaginada possui o herói ou heroína, centro do interesse, para quem o autor procura, de todas as maneiras possíveis, orientar a simpatia do leitor. O sentimento de segurança com que acompanhamos o/a protagonista, através de suas perigosas aventuras, é o mesmo com que o herói ou heroína, na vida real, atira-se à água para salvar um homem que se afoga. Ao astro "Nada pode acontecer", pois a novela não pode acabar. O fato da heroína se apaixonar, invariavelmente, pelo herói, não pode ser encarado como um retrato da realidade, mas será de fácil compreensão, se encararmos como um componente necessário ao devaneio. Os demais personagens da história dividem-se em: bons e maus. Os bons são aliados do personagem que se tornou o herói da história, e os maus são seus inimigos.
Sabemos que muitas obras imaginativas não guardam boa distância do modelo do devaneio ingênuo da criança. Não posso deixar de suspeitar, que acontecimentos mais afastados estejam entrelaçados a fantasias ou mitos do inconsciente. Em muitos romances, é como se o autor se colocasse dentro da persona do mocinho e observasse as outras personagens. Diz Freud, em O Escritor Inventivo, que “o romance dito psicológico, sem dúvida, deve sua singularidade à inclinação do escritor moderno de dividir seu ego, pela auto-observação, em muitos egos parciais, e em consequência personificar as correntes conflitantes de sua própria vida mental por vários heróis”.
Há também o “escritor-relator”, que descreve a vida sem nela penetrar. É apenas um espectador da vida, como muitas pessoas costumam ser. Embora seu material não seja novo, procede do inconsciente popular, disfarçadamente contido nos mitos, lendas e contos de fada. Quando um escritor apresenta sua obra baseada no imaginário ancestral, o leitor sente grande prazer em reviver um passado de glória.
Em suma, na produção literária está mais que evidente a técnica de superar o sentimento de repulsa à barreira do interdito. Faz literatura quem oferece a oportunidade ao leitor de se permitir idealizações sem culpas, quimeras sem autoacusações, e o não rebaixamento de sua condição de adulto.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES). Consultante Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Foi um dos primeiros neonatologistas brasileiros.

Nenhum comentário:

 

Free Blog Counter
Poker Blog