sábado, 11 de agosto de 2018

LÁ SE FOI A COMPANHEIRA


Por Regina Ribeiro, jornalista de O Povo e editora executiva das Edições Demócrito Rocha
Conheci a professora Simone de Sousa há bastante tempo, quando inventei de fazer outra graduação e escolhi História. Na época, ela já era aquela professora que se ama e odeia ao mesmo tempo. Tinha fama de muito exigente e de não deixar barato as estripulias de aluno relapso. Uma nova gravidez, que aumentou meus filhos para três, e o trabalho na Redação me fizeram abandonar o curso. Voltei, desta vez para um mestrado, alguns anos mais tarde, quando a professora já se aposentava. Interrompi o curso novamente. Cheguei a comentar com ela que a história da minha vida nunca conseguia encontrar-se com a História que eu tanto quis estudar.
"Companheira, a História é assim mesmo. Vive de interrupção. É muito pouco o que permanece".
Bem mais tarde a reencontrei na Fundação Demócrito Rocha e trabalhamos juntas. Ela como autora dos livros didáticos. Eu como editora. Tivemos alguns embates muito honestos, onde ela dizia o que pensava e eu também. Esse exercício de sinceridade nos aproximou a ponto de, mesmo em momentos de muita delicadeza, conseguia rir das tiradas irônicas da professora. Após uma ou outra reunião, nem sempre fácil, conversávamos sobre as coisas banais da vida. Uma vez lhe mostrei uma foto do dia em que me casei: "Que fofa. Mas esse magrelo é aquele homem daquele tamanho?" Vaidosa, se mantinha elegante: cabelo vermelho, sobrancelhas delineadas, bem vestida, batom e unhas impecáveis. Trazia da Europa os cremes Dior. Tinha sempre pronto um comentário sobre os amigos e muitas brincadeiras sobre uns poucos "desafetos", que não passavam de pretextos para risadas largas. "Companheira, gosto muito de fulano, é competente, mas companheira, não sou cega..." E castigava.
Quanto aos gestores públicos a conversa era outra: "Companheira, puseram uma anta naquele cargo. Política é uma desgraça."
Há dois anos me procurou e disse que queria indicar o herdeiro dos direitos autorais dos livros e que eu providenciasse o novo contrato.
Quando perguntei por que a pressa ela me respondeu: "Não é pressa, companheira, eu sei que vou morrer, então quero deixar tudo resolvido." Nos últimos tempos vinha insistindo nisso. Uma das últimas vezes que conversei com ela, me falou que estava plantando hortaliças no sítio e que ia preparar uma cesta para mim. "Tudo orgânico, companheira". Explicou que a saúde estava muito frágil.
Simone, você vai viver cem anos. "Vou nada, companheira. Já está tudo pronto. Quero morrer em paz, vou ser cremada e não vai ter velório, porque morrer não é evento social".
A professora Simone formou gerações de historiadores. Por décadas, foi uma referência em didática do ensino de História. Toda essa experiência, levou para a construção dos livros de História que publicou pela FDR. Há três anos, reeditamos os livros que agora saem pela Editora Dummar. Do ponto de vista conceitual, o tempo não afetou em nada a professora Simone. Ouvi algumas palestras que ela dava aos professores e admirava a clareza e o método como lidava com jovens professores.
Antes de amanhecer o dia de ontem, a Morte esteve com a professora Simone. Fiquei imaginando a conversa entre as duas. "Sua cretina, você nem é tão feia como me falaram a vida inteira". A Morte deve ter dado uma risada e convidado Simone para dar um passeio pela cidade. Depois de caminharem pela avenida Beira-Mar, sentaram-se para sentir o vento frio da manhã, no espigão da praia. A Morte apontou para os primeiros raios de Sol e disse: "É para lá que vamos, Companheira".
Publicado In: O Povo, Opinião, de 11/8/18. p.21.

Nenhum comentário:

 

Free Blog Counter
Poker Blog