Por
Regina Ribeiro, jornalista de O Povo e editora executiva das Edições Demócrito
Rocha
Conheci a professora
Simone de Sousa há bastante tempo, quando inventei de fazer outra graduação e
escolhi História. Na época, ela já era aquela professora que se ama e odeia ao
mesmo tempo. Tinha fama de muito exigente e de não deixar barato as estripulias
de aluno relapso. Uma nova gravidez, que aumentou meus filhos para três, e o
trabalho na Redação me fizeram abandonar o curso. Voltei, desta vez para um
mestrado, alguns anos mais tarde, quando a professora já se aposentava.
Interrompi o curso novamente. Cheguei a comentar com ela que a história da
minha vida nunca conseguia encontrar-se com a História que eu tanto quis
estudar.
"Companheira, a História é assim mesmo. Vive de
interrupção. É muito pouco o que permanece".
Bem mais tarde a
reencontrei na Fundação Demócrito Rocha e trabalhamos juntas. Ela como autora
dos livros didáticos. Eu como editora. Tivemos alguns embates muito honestos,
onde ela dizia o que pensava e eu também. Esse exercício de sinceridade nos
aproximou a ponto de, mesmo em momentos de muita delicadeza, conseguia rir das
tiradas irônicas da professora. Após uma ou outra reunião, nem sempre fácil,
conversávamos sobre as coisas banais da vida. Uma vez lhe mostrei uma foto do
dia em que me casei: "Que fofa. Mas
esse magrelo é aquele homem daquele tamanho?"
Vaidosa, se mantinha elegante: cabelo vermelho, sobrancelhas delineadas, bem
vestida, batom e unhas impecáveis. Trazia da Europa os cremes Dior. Tinha
sempre pronto um comentário sobre os amigos e muitas brincadeiras sobre uns
poucos "desafetos", que não passavam de pretextos para risadas
largas. "Companheira, gosto muito de
fulano, é competente, mas companheira, não sou cega..." E castigava.
Quanto aos gestores
públicos a conversa era outra: "Companheira,
puseram uma anta naquele cargo. Política é uma desgraça."
Há dois anos me procurou e
disse que queria indicar o herdeiro dos direitos autorais dos livros e que eu providenciasse
o novo contrato.
Quando perguntei por que a
pressa ela me respondeu: "Não é pressa,
companheira, eu sei que vou morrer, então quero deixar tudo resolvido." Nos últimos tempos vinha insistindo nisso. Uma das
últimas vezes que conversei com ela, me falou que estava plantando hortaliças
no sítio e que ia preparar uma cesta para mim. "Tudo orgânico, companheira".
Explicou que a saúde estava muito frágil.
Simone, você vai viver cem
anos. "Vou nada, companheira. Já está
tudo pronto. Quero morrer em paz, vou ser cremada e não vai ter velório, porque
morrer não é evento social".
A professora Simone formou
gerações de historiadores. Por décadas, foi uma referência em didática do
ensino de História. Toda essa experiência, levou para a construção dos livros
de História que publicou pela FDR. Há três anos, reeditamos os livros que agora
saem pela Editora Dummar. Do ponto de vista conceitual, o tempo não afetou em
nada a professora Simone. Ouvi algumas palestras que ela dava aos professores e
admirava a clareza e o método como lidava com jovens professores.
Antes de amanhecer o dia
de ontem, a Morte esteve com a professora Simone. Fiquei imaginando a conversa
entre as duas. "Sua cretina, você nem é
tão feia como me falaram a vida inteira".
A Morte deve ter dado uma risada e convidado Simone para dar um passeio pela
cidade. Depois de caminharem pela avenida Beira-Mar, sentaram-se para sentir o
vento frio da manhã, no espigão da praia. A Morte apontou para os primeiros
raios de Sol e disse: "É para lá que
vamos, Companheira".
Publicado In: O Povo, Opinião, de 11/8/18. p.21.
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