quinta-feira, 2 de agosto de 2018

UM LUGAR PARA O PENSAR UTÓPICO


Por André Haguette (*)
Uma das características da sociedade brasileira é seu caráter conservador. Ela muda, com efeito, mas não se transforma; ela se adapta, embora sempre com atraso, às mudanças trazidas pela modernidade, mas sem modificar seus traços fundamentais de duplicidade de seus arranjos sociais e, portanto, de grande iniquidade social. Aboliu a escravidão, mas não libertou os escravos que, mesmo com uma carta de alforria nas mãos, continuam amarrados; urbanizou-se sem uma industrialização capaz de dar emprego aos expulsos do campo; tolerou sindicatos mas os prendeu ao domínio do Estado; doou leis trabalhistas antes que sejam conquistadas. Mais recentemente, planejou o solidário SUS sem universalizá-lo permitindo uma saúde privada a desfigurá-lo; criou uma lei do trabalho doméstico sem aboli-lo ao contrário do que ocorreu em sociedades liberais; após 500 anos, colocou 95% das crianças na escola sem eliminar a duplicidade escolar produzindo “doutores do ABC “ e “analfabetos escolarizados”; via Bolsa Família, instituiu uma rede de distribuição de renda mínima de cunho assistencialista em não oferecer aos beneficiários meios de se livrarem da dependência do poder público e ter acesso ao emprego e às condições de obtenção da própria renda; persiste em recriar as Bolsas Empresa e Classes Médias via subsídios, clientelismo, corrupção, desoneração, refis, impostos indireto e regressivo, cabides de empregos. A cima de tudo, a passagem das elites rurais para elites urbanas em nada modificou a crueldade de seu domínio.
Continua evidente a conclusão de Frei Tito, em 2007, após análise do Bolsa Família: “A estrutura social do Brasil, desigual e perversa, permanece intocada”. De 2007 para cá, obviamente, essa estrutura se solidificou ainda mais.
Uma sociedade conservadora produz e se sustenta numa mentalidade conservadora; as nossas elites e nosso povo, nós temos uma mentalidade conservadora hipócrita, adeptos que somos do fatalismo cultural, religioso, racial e econômico. Não nos colocamos nunca em cheque; aceitamos o mundo a nosso redor como “natural”; “é assim mesmo”, repetimos. Temos uma passividade e uma condescendência conosco mesmo, estando sempre a lamentar não sermos como os outros povos que construíram um mundo melhor para si mesmos. Jamais pomos no centro da discussão as três fontes principais de desigualdade: a classe, a raça e o sexo, sobretudo a primeira, a classe. O grande sucesso das classes dominantes brasileiras terá sido de passar aos excluídos e trabalhadores sua ideologia de que as coisas são como Deus quer, a “naturalização” e sacralização do status quo. Quaisquer ideias ou movimentos dissonantes são taxados de “utópicos”, irrealizáveis, subversivo, ingênuos, esquecendo que somente parecem utópicos e irrealizáveis do ponto-de-vista da ordem social vigente. O que era utópico ontem pode ser a nova ordem hoje. Tudo depende da perspectiva da pessoa ou do grupo no poder.
Há, portanto, um lugar para o pensamento utópico; não somos condenados a sermos o país injusto que somos hoje; como diziam os estudantes em 1968: “A praia é aqui”! Subscrevo as palavras de Karl Mannheim: “a desaparição da utopia ocasiona um estado de coisas estático em que o próprio homem se transforma em coisa”.
(*) Sociólogo e professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Publicado In: O Povo, Opinião, de 18/6/18. p.27.

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