quarta-feira, 22 de julho de 2020

A PRESCRIÇÃO E A AUTONOMIA DO MÉDICO


Por Helvécio Neves Feitosa (*)
A relação entre médicos, insculpida no Código de Ética Médica (CEM), não trata apenas de cortesia entre colegas, muito menos de dispositivos atinentes a regras de etiqueta ou de convivência harmônica entre os que exercem a mesma profissão. Na verdade, o que está em jogo são os melhores interesses dos pacientes, dos seus familiares e da coletividade, razão maior da existência do ato médico.
Embora o médico deva ter, para com os seus colegas, respeito, consideração e solidariedade, isso não o exime de denunciar atos que contrariem os postulados éticos da profissão ou que possam agredir os direitos conquistados na luta pela cidadania ou lastreados pelo respeito à dignidade humana. Não se pode falar em solidariedade de classe quando alguém viola princípios éticos da profissão ou a usa para favorecer o crime. Lançar mão da posição hierárquica de gestor para impedir que seus subordinados atuem consoante o regramento ético da profissão fere mortalmente a deontologia médica. Não se trata apenas de faltas contra companheiros da mesma atividade profissional, mas, acima de tudo, de graves e, potencialmente, irreparáveis prejuízos na condução dos interesses maiores dos pacientes ou da coletividade.
De acordo com o CEM, é vedado ao médico "Desrespeitar a prescrição ou o tratamento de paciente, determinados por outro médico, mesmo quando em função de chefia ou de auditoria, salvo em situação de indiscutível benefício para o paciente, devendo comunicar imediatamente o fato ao médico responsável" (Art. 52).
As interferências no ato médico por superior hierárquico ou auditor, traduzidas por alteração da prescrição de medicamentos, anotações em exames solicitados, críticas às técnicas cirúrgicas realizadas, às dietas, ao internamento e à alta são absolutamente descabidas, ao afrontar a dignidade do profissional e a autonomia tecno-científica de cada médico. A exceção a esse dispositivo resume-se a situações em que exista a evidência de dano ao paciente e, ainda assim, o médico tem o dever de comunicar a ocorrência ao colega responsável. Como exemplo de necessidade fortuita de intervenção, pode ocorrer a situação de prescrição de medicação errada, que coloque o paciente em perigo iminente de morte ou de sério agravo à sua saúde. 
(*) Médico, professor universitário  e Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado do Ceará (Cremec).
Fonte: Publicado In: O Povo, de 10/06/2020. Opinião. p.15.

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