sexta-feira, 6 de março de 2020

AOS VIVOS: "O preço da chuva lá em nós" ... e outros causos


O preço da chuva lá em nós

Dona Tatá, matuta braba do sítio Porca Magra, ganhou passagem pro Rio de Janeiro, presente de uma filha bem de vida. Passagem em mão, pediu ao marido "uns cento e vinte conto pra gastar na Copacabana". Sanoca, o dito cujo, arrumou a grana com relativa alegria (tinha uma quenga no Alto do Bode e estava doido que a mulher fosse passar uns cinco anos fora).
Passaram-se três dias de Cidade Maravilhosa e lá dona Tatá telefona, perturbando por mais uma coisinha. Quase chorando...
- San, querido, mande urgentemente mais uns 300 ou 400 conto!
- Diabeisso, Tatá? Tá pensando que meu dinheiro é fôia de pau?
- Não, San! É que aqui chove muito e eu preciso dumas roupas de gabarito pra chuva! Entendeu?
Sanoca, mão de bebê, deu uma de ministro:
- Faça o seguinte, mulher, volte pro Ceará que a chuva aqui é mais barata!
Sertão Central do Ceará, século XIX
Três longos anos consecutivos de seca, torando esperanças. Até pra cuspir faltava matéria-prima. Quem chorasse, o outro bebia a lágrima. E sabendo-se que naquele tempo não havia ar condicionado, ventilador, refrigerador... Quem dali saísse pro inferno, só estranharia a comida.
Quisesse saber quão brabo era a estiagem a que nos referimos, fosse ter com o sempre despachado padre Raimundo, na Pirapora. Ele mesmo que naquele dia (passava do meio dia) recebia na casa paroquial vazia de gente ninguém menos que o gaiato João Neném, matuto qualificado, logo a disparar queixa:
- Tem lá cristão que aguente, seu padre! Mulesta de calor esse, né?
- É... Nunca dantes algo assim, meu filho.
- O purgatório é menos abafado, e já tem até linha de ônibus pra lá.
Olhando prum lado e outro, sem divisar um pé de pessoa - e percebendo a paisagem catingueira entristecida ao derredor, o visitante acha de fazer infeliz comparação entre a falta de chuva, a figura do religioso com que conversava e o "mamífero da família dos equídeos (Equus asinus), de origem africana, presente em todo o mundo por ser facilmente domesticável"...
- Numa seca dessas, só escapa padre e jumento!
A resposta do sacerdote não poderia ser mais ecumênica:
- E tu por acaso é padre, João Neném?
Arre água!!!
Tempo de chuva e água abunda - nos "cóigo", lagoas e açudes do sertão, estamos todos "cansos" de saber. No estio, calango pede penico, mêi palmo de língua pra fora, esturricado de sede. Ninguém sabe é que na seca medonha dona Raimunda se lasca de ganhar dinheiro, justo vendendo água ao povo da redondeza. Diz ela que é natural a água que "nigucia".
A partir de outubro começa encher os bolsos; vende do copinho de duas terças (existe?) ao garrafão de 60 litros (existe também?). Mas, por que apenas ela comercializa tanto o produto? Se compararmos as vendas de Raimunda às de seu Menelau, do mesmo ramo, a distância de faturamento é jumentalar.
Olhando a olho nu, os líquidos são da mesma cor e consistência; vizinhos os pontos de um e outro; o apetite pela bebida é o mesmo para todos. Seriam os nomes dos estabelecimentos? O dela: "RAIMUNDÁGUA". O dele: "ARRE ÁGUA!!!"
Bem, quando a mulher conta que vende mais que o concorrente por ser a água dela "natural" (garrafão tampado com sabugo), conclui-se que o diferencial da água da Raimunda, caseira, intimista e com a corda toda, está na fonte. Fonte Cacimbão!
Fonte: O POVO, de 5/04/2019. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

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