quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

CAMINHOS DO CEARÁ: no Mucuripe, a labirinteira Mundinha

Por Izabel Gurgel (*)

Uma mulher ao tear. Tem brilho o que ela tece. Cor de bronze velho. Uma outra, à beira do forno na casa de farinha, cuida de uma das últimas etapas do processo, a torra da massa da mandioca. Ao pilão, outra mulher quebra o milho. Juntinho ali um vasilhame com grãos de café, esperando a vez. Em uma urupemba, ou urupema, peneira-se o milho pilado. Galinhas e capotes por perto.

Visito a lapinha iniciada em 1947 por Dona Mundinha, no Mucuripe, na mesma casa onde mora desde o casamento com Zé da Florinda, no ano anterior. Vejo e migro, de uma cena à outra, ali, imersa no cinema feito a mão, por tantas mãos. É um elogio às manualidades, à orquestração quase sempre invisível do cotidiano. Presto atenção.

Olho como quem lê. A criatura leitora (re)escreve o que lê, toma notas, literalmente ou na imaginação; labora, fabula, vive (n)a leitura. Um homem corta madeira, fazendo ver as achas de lenha. O fogo é tão imprescindível quanto o sol. No engenho movido pelo boi, onde se vê a garapa da cana fluindo para o balde; na casa-oficina do ferreiro, na qual estão dois homens tão aplicados ao ofício quanto Dona Mundinha ao fazer a renda bordada ou o bordado rendado de nome labirinto. Ofício que aprendeu criança, presente no Mucuripe de então como a terra e o mar para quem ali vivia. É preciso forjar a própria existência, sabemos.

Feito a aranha costureira do Reino das Águas Claras, do sítio do Pica-pau-amarelo, exímia no que faz pela prática cotidiana de fazer, Dona Mundinha sabe, sentindo, o que diz a lapinha que começou a maquinar tão logo viu uma na casa de uma vizinha. Conta-nos que tinha uns cinco anos e, em dezembro, todos os dias estava lá para ver melhor, perguntando, sobre cada coisa vista. Ah, as perguntas das crianças. Honrou a promessa que fez a si mesma de ter uma em casa, tão logo tivesse sua própria casa.

Tudo que é vivo está em movimento. Um homem pesca de anzol; outro, de barco. Tem moinho de vento, catavento. Bichos de criação, de montaria, plantação e colheita e fartura. Penso, então, nas poucas pinturas vistas de outra Mundinha do Mucuripe. O rio|riacho Maceió vívido na tela, fecundo como a floresta de cajueiro em cujas folhas Mundinha, a pintora, então criança, desenhava com espinhos, materializando a imaginação que as mãos davam a ver.

Quer visitar a lapinha no Mucuripe? Fica na rua Senador Machado, 290. Antecipe os parabéns: Dona Mundinha vai fazer 100 anos em abril de 2024. Combine a visita com a filha Antonieta, pelo telefone 99612.1857.

Conhece mais presépios e lapinhas em Fortaleza e outras cidades do Ceará? Conta pra mim.

Icó, vc sabe, é a cidade-lapinha. Juazeiro tem um, nos fundos da Matriz, que traz histórias da cidade. Na Ceart da Aldeota, mais de 40 compõem a exposição do concurso anual. O resultado sai quinta, dia 14. Como um bocado está à venda, quem compra quer logo levar para casa. Então vá ver antes. Comece pelo menor, o do Elias, miniatura das miniaturas. Vive em uma lâmpada, cabe na palma da mão, e tem quatro pés de carnaúba bordados por mãos bentas.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 10/12/23. Vida & Arte, p.2.


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