Por
Romeu Duarte Junior (*)
À memória de Lô Borges
1982, Projeto Pixinguinha, Theatro José de
Alencar. Um cara com cara de garoto (que sempre preservou), maçãs do rosto
salientes, entra no palco com a sua guitarra e uma timidez impressionante.
Banda afiada de apoio, desfia ante a numerosa plateia um a um dos seus
clássicos, por ele compostos com seu irmão no final da sua adolescência e
cantados por seu grande amigo, o tênis encardido no clube da esquina. Completa
o set com canções que havia lançado no álbum "A Via Láctea", de 1979,
um vento de maio equatorial. A casa de espetáculos veio abaixo quando o show
terminou. Acho que o músico nunca havia tocado para tanta gente e nunca
imaginou ter fãs numa cidade tão longe da sua BH natal. "Todos ao Estoril!
Alguém leva o cara!", gritou alguém. O artista sumiu na noite...
Já conhecia bem o trabalho dele. Mescla de
rock, jazz, psicodelia, MPB e outros baratos afins. Direto do cruzamento das
ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro Santa Tereza, coração musical
pulsante da capital mineira, tudo o que você podia ser. Que tal um girassol da
cor do seu cabelo, Lennon e McCartney? O disco de estreia que dividiu com seus
camaradas das Alterosas ouvi quase até furar. As melodias complexas, os acordes
dissonantes, os arranjos ousados, as letras que falavam de viagens para fora e
para dentro, tudo isso me encantava. Ah, quantas horas não passei apurando o
ouvido e os olhos para decifrar um verso, apreender uma escala, degustar um
solo, devorar a ficha técnica dos discos e saber quem tocava em cada faixa.
Canções potentes, belas, sublimes...
Por aquela época, pré, durante e pós
Massafeira, tinha deixado o rock'n'roll meio de lado e passei a estudar a
música brasileira. Fazia parte de um grupo que se reunia amiúde para escutar,
tocar e compor música e que tinha nos mineiros alguns dos seus heróis musicais.
Participamos de festivais e fizemos shows, mas a vida, com o seu próprio curso,
nos levou para outras paragens. Só sei que o matulão da mineirada foi a nossa
trilha sonora por muito tempo. Aliás, pelo menos para mim, continua sendo e
certamente será. Além disso, a imensa e sincera amizade e o pétreo respeito que
até hoje une aquele povo, tão difícil de encontrar aqui, nos fascinava. O certo
é que Fortaleza se tornou uma praça simpática aos musicais da terra de
Drummond. Certeza de casa cheia e aplauso.
Passei a semana atrasada com uma grande
preocupação na cabeça e uma dor no peito. As notícias que me chegavam do cara
com cara de garoto não eram boas. Hospitalizado, sedado, traqueostomizado,
dependente de hemodiálise. Após hiatos criativos, desde 2019 fazia um disco por
ano com parceiros os mais diversos. Todavia, o tal do streaming, que rege
cruelmente o meio fonográfico e refém do jabaculê, virou-lhe as costas. Nunca
mais escutei qualquer canção sua. Súbito, no domingo à noite, entre uma e outra
novidade ruim que a televisão adora divulgar, a pior de todas. Se eu morrer,
não chore não, é só a lua na paisagem da janela, quem sabe isso quer dizer
amor. Arrasado, tentei dormir e não consegui. Vento solar e estrela do mar. Vá
em paz, Lô, muito grato por tudo.
(*) Arquiteto e
professor da UFC. Sócio do Instituto do Ceará. Colunista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 10/11/25. Vida & Arte. p.2.

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