Texto integral da pregação do Fr. Raniero
Cantalamessa
"Será que Deus ama ser implorado
para conceder os seus benefícios? Será que a nossa oração pode fazer Deus mudar
seus planos? Não, mas há coisas que Deus decidiu conceder-nos como fruto, junto
com sua graça e a nossa oração, quase como para compartilhar com as suas
criaturas o mérito do benefício recebido. É ele quem nos impulsiona a fazê-lo:
“Pedi e vos será dado, disse Jesus, batei e a porta vos será aberta” (Mt 7,7)."
O Fr. Raniero Cantalamessa, OFMCap fez a
pregação da Sexta-feira da Paixão na Basílica de São Pedro em 10/04/2020. Eis o
texto na íntegra:
"São Gregório Magno dizia que a Escritura cum legentibus crescit,
cresce com aqueles que a leem[1]. Exprime significados sempre novos segundo as
perguntas que o homem traz no coração ao lê-la. E nós, neste ano, lemos a
narrativa da Paixão com uma pergunta – melhor, com um grito – no coração que se
levanta de toda a terra. Devemos procurar colher a resposta que a palavra de Deus
lhe dá.
O que acabamos de escutar é a narrativa do mal objetivamente maior
jamais cometido na terra. Nós podemos olhar para ele de dois ângulos diversos:
ou pela frente, ou por trás, isto é, ou pelas suas causas, ou pelos seus
efeitos. Se nos detemos nas causas históricas da morte de Cristo, nós nos
confundimos e cada um será tentado em dizer como Pilatos: “Eu não sou
responsável pelo sangue deste homem” (Mt 27,24). A cruz é melhor
compreendida pelos seus efeitos do que pelas suas causas. E quais foram os
efeitos da morte de Cristo? Justificados pela fé nele, reconciliados e em paz
com Deus, replenos de esperança de uma vida eterna! (cf. Rom 5,1-5)
Mas há um efeito que a situação em ato nos ajuda a colher em particular.
A cruz de Cristo mudou o sentido da dor e do sofrimento humano. De todo
sofrimento, físico e moral. Ela não é mais um castigo, uma maldição. Foi
redimida pela raiz, quando o Filho de Deus a tomou sobre si. Qual é a prova
mais segura de que a bebida que alguém lhe oferece não está envenenada? É se
ele bebe em sua frente do mesmo copo. Assim Deus fez: na cruz bebeu, ao lado do
mundo, do cálice da dor até a borra. Mostrou assim que ele não está envenenado,
mas que há uma pérola em seu fundo.
E não só a dor de quem tem a fé, mas toda dor humana. Ele morreu por
todos. “Quando for elevado da terra – dissera –, atrairei todos a
mim” (Jo 12,32). Todos, não somente alguns! “Sofrer – escrevia São João Paulo II do seu
leito no hospital após o atentado – significa tornar-se particularmente
receptivo, particularmente aberto à ação das forças salvíficas de Deus,
oferecidas em Cristo à humanidade”[2]. Graças à cruz de Cristo, o
sofrimento se tornou também ele, à sua maneira, uma espécie de “sacramento
universal de salvação” para o gênero humano.
* * *
Qual é a luz que tudo isso lança sobre a situação dramática que a
humanidade está vivendo? Também aqui, mais do que para as causas, devemos olhar
para os efeitos. Não apenas os negativos, dos quais ouvimos todo dia as tristes
manchetes, mas também os positivos, que somente uma observação mais atenta nos
ajudar a colher.
A pandemia de corona vírus nos despertou bruscamente do perigo maior que
sempre correram os indivíduos e a humanidade, o do delírio de onipotência.
Temos a ocasião – escreveu um conhecido Rabino judeu – de celebrar este ano um
especial êxodo pascal, o “do exílio da consciência”[3]. Bastou o
menor e mais informe elemento da natureza, um vírus, para nos recordar que
somos mortais, que o poderio militar e a tecnologia não bastam para nos salvar.
“Não dura muito o homem rico e poderoso: – diz um salmo da Bíblia – é semelhante ao
gado gordo que se abate” (Sl 49,21). E é verdade!
Enquanto pintava os afrescos da catedral de São Paulo em Londres, o
pintor James Thornhill, a um certo ponto, foi tomado por tanto entusiasmo por
um afresco seu que, afastando-se para vê-lo melhor, não percebia que quase
despencava no vão do andaime. Um assistente, horrorizado, entendeu que um grito
de chamada teria apenas acelerado o desastre. Sem pensar duas vezes, molhou um
pincel na tinta e o arremessou contra o afresco. O mestre, pasmo, deu um passo
adiante. A sua obra estava comprometida, mas ele estava salvo.
Assim Deus às vezes faz conosco: confunde os nossos projetos e a nossa
tranquilidade, para nos salvar do abismo que não vemos. Mas cuidado para não
nos enganarmos. Não foi Deus que arremessou o pincel contra o afresco de nossa
orgulhosa civilização tecnológica. Deus é nosso aliado, não do vírus! “Eu tenho um
desígnio de paz, não de sofrimento”, ele mesmo nos diz na Bíblia (Jr
29,11). Se esses flagelos fossem castigos de Deus, não seria explicado por que
eles caem igualmente nos bons e nos maus, e por que geralmente são os pobres
que têm as maiores consequências. Eles seriam mais pecadores que outros?
Aquele que chorou um dia pela morte de Lázaro chora hoje pelo flagelo
que caiu sobre a humanidade. Sim, Deus "sofre", como todo pai e toda mãe.
Quando descobrirmos um dia isso, teremos vergonha de todas as acusações que
fizemos contra ele na vida. Deus participa da nossa dor para superá-la. “Deus – escreve Santo
Agostinho –, por ser soberanamente bom, nunca deixaria qualquer mal existir em suas
obras se não fosse bastante poderoso e bom para fazer resultar do mal o bem”[4] .
Será que Deus Pai quis a morte do seu Filho, a fim de daí tirar o bem?
Não, simplesmente permitiu que a liberdade humana fizesse o seu percurso,
contudo, fazendo-a servir ao seu plano, não ao dos homens. Isto vale também
para os males naturais, como terremotos e pestilências. Não os provoca. Ele deu
também à natureza uma espécie de liberdade, claro, qualitativamente diversa
daquela moral do homem, mas ainda assim, sempre uma forma de liberdade.
Liberdade de evoluir-se segundo suas leis de desenvolvimento. Não criou o mundo
como um relógio pré-programado em cada mínimo movimento. É o que alguns chamam
de acaso, e que a Bíblia chama, ao contrário, de “sabedoria de Deus”.
* * *
O outro fruto positivo da presente crise de saúde é o sentimento de
solidariedade. Quando foi, desde que há memória, que os homens de todas as
nações se sentiram tão unidos, tão iguais, tão pouco contenciosos, como neste
momento de dor? Jamais como agora temos sentido a verdade de um nosso grande
poeta: “Homens, paz! Sobre a terra firme grande é mistério”.[5] Esquecemo-nos
dos muros por construir. O vírus não conhece fronteiras. Em um segundo, abateu
todas as barreiras e as distinções: de raça, de religião, de censo, de poder.
Não devemos voltar atrás quando este momento tiver passado. Como tem nos
exortado o Santo Padre, não devemos desperdiçar esta ocasião. Não deixemos que
tanta dor, tantas mortes, tanto esforço heroico por parte dos profissionais de
saúde tenha sido em vão. É esta a “recessão” que mais devemos temer.
Transformarão suas espadas em arados e suas lanças em foices: não
pegarão em armas uns contra os outros e não mais travarão combate (Is 2,4).
É o momento de tornar real algo desta profecia de Isaías, da qual a
humanidade desde sempre aguarda o cumprimento. Demos um basta à trágica corrida
às armas. Vocês gritam com todas as suas forças, jovens, porque é acima de tudo
o seu destino que está em jogo. Destinemos os intermináveis recursos empregados
às armas a finalidades de que, nestas situações, vemos a necessidade e a
urgência: a saúde, o saneamento, a alimentação, o cuidado da criação. Deixemos
à geração que virá, se necessário, um mundo mais pobre de coisas e dinheiro,
porém mais rico de humanidade.
* * *
A palavra de Deus nos diz qual é a primeira coisa que devemos fazer em
momentos como estes: gritar a Deus. É ele mesmo quem põe nos lábios dos homens
as palavras para se gritar a ele, às vezes, até palavras duras, de lamento, e
quase de acusação. “Levantai-vos, vinde logo em nosso auxílio, libertai-nos pela vossa
compaixão! […] Despertai! Não nos deixeis eternamente!” (Sl 44,24.27). “Mestre, estamos
perecendo e tu não te importas?” (Mc 4,38).
Será que Deus ama ser implorado para conceder os seus benefícios? Será
que a nossa oração pode fazer Deus mudar seus planos? Não, mas há coisas que
Deus decidiu conceder-nos como fruto, junto com sua graça e a nossa oração,
quase como para compartilhar com as suas criaturas o mérito do benefício
recebido. [6] É ele quem nos impulsiona a fazê-lo: “Pedi e vos será
dado, disse Jesus, batei e a porta vos será aberta” (Mt 7,7).
Quando, no deserto, os hebreus eram mordidos por serpentes venenosas,
Deus ordenou a Moisés para levantar sobre uma haste uma serpente de bronze, e
quem a olhava não morria. Jesus se apropriou deste símbolo. “Como Moisés
levantou a serpente no deserto – disse a Nicodemos –, assim é necessário
que o Filho do Homem seja levantado, para que todos os que nele crerem tenham a
vida eterna” (Jo 3,14-15). Também nós, neste momento, somos mordidos por uma
invisível “serpente” venenosa. Olhemos para aquele que foi “levantado” por nós
sobre a cruz. Adoremo-lo por nós e por todo o gênero humano. Quem olhar para
ele com fé e amor não morrerá. E se morrer, será para entrar na vida eterna.
"Depois de três dias eu ressuscitarei", Jesus predisse (cf. Mt 9:31).
Nós também, depois desses dias que esperamos que sejam curtos, ressuscitemos e
saímos dos túmulos de nossas casas. Não para voltar à vida anterior como
Lázaro, mas para uma nova vida, como Jesus. Uma vida mais fraterna, mais
humana. Mais cristã!
Traduzido do italiano por Ir. Ricardo
Farias, OFMCap
[1] Moralia in Iob, XX,1.
[2] Salvifici
doloris, n. 23.
[3] https://blogs.timesofisrael.com/coronavirus-a-spiritual-message-from-brooklyn
(Yaakov Yitzhak Biderman).
[4] Enchiridion,
11,3 (PL 40, 236).
[5] G. Pascoli, “I
due fanciulli” (Os dois filhos).
[6] Cf. S. Tomás de
Aquino, S.Th. II-IIae, q. 83, a.2.
Fonte: Vatican News.
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