sábado, 4 de abril de 2020

O DIA DOS MIL MORTOS


Por Marcus Vale (*)
Em meu confinamento, devido ao novo Corona vírus (Covid-19), achei que seria interessante lembrar (na verdade, para uma grande parte de nosso povo, o verbo mais correto seria informar) que já passamos por algo catastrófico, em Fortaleza, no final do Século XIX se estendendo para o Século XX.
Foi durante a grande seca de 1877. Fortaleza ficou abarrotada de sertanejos fugindo da seca. Dos 130.000 habitantes, 110.000 (84%) eram de flagelados. Ficaram alojados precariamente na periferia da cidade, sem a menor condição sanitária e alimentando-se muito mal. Todas as condições propícias a uma epidemia. E a Varíola foi a peste da vez.
Em outubro de 1878 foram contabilizados 5.000 casos que resultou em 592 mortes. Em novembro, calculava-se 40.000 doentes com 9.721 mortes. O mês de dezembro teve uma média de 500 mortos diários. Mas não se pode esquecer do dia 10 de dezembro de 1878 em que Fortaleza teve 1.004 mortos que tiveram de ser enterrados em vala comum. Os coveiros disputavam seu espaço de trabalho com os urubus. Calcula-se que a cidade perdeu por volta de um quinto de sua população. Fosse hoje, equivaleria a mais de 500.000 pessoas, considerando nossa atual população de 2.600.000 habitantes.
Assim como chegou, a Varíola se foi. Mas em 1900, quando mais uma seca assolou o Ceará, a Varíola voltou com força total. Aqui começa a história que quero contar cujo personagem central é Rodolpho Theóphilo.
Nosso herói foi um farmacêutico, intelectual, escritor (28 livros), inventor da cajuína, membro e um dos presidentes da academia literária Padaria Espiritual, divulgador científico (essa é minha visão), abolicionista, entre outras qualidades. Na linguagem atual, poderia ser classificado com um ativista social.
Rodolpho nasceu em 1853, em Salvador (por acaso) onde passou apenas alguns dias quando voltou para Fortaleza com seus pais, o médico cearense Marcos José Theóphilo e sua mãe baiana Antônia Josefina Sarmento. Seu pai teve um grande protagonismo sanitário no Ceará pois era um dos poucos médicos com quem o governo contava para combater as frequentes epidemias que o estado sofreu, entre elas a Febre Amarela, a Cólera e a Varíola.  Marcos morreu pobre e endividado aos 43 anos deixando desamparados a viúva, D. Guilhermina, madrasta de Rodolpho e irmã de sua mãe e mais cinco filhos, sendo Rodolpho o mais velho.
Com muita dificuldade, Rodolpho conseguiu um emprego e concluiu seus estudos. Assim como seu pai, Rodolpho também estudou em Salvador onde formou-se em Farmácia na Faculdade de Medicina da Bahia. Voltou da Bahia formado em 1875 e, com a ajuda de amigos de seu pai, montou farmácia em Pacatuba e depois em Fortaleza. Casou-se com D. Raimundinha Cabral, filha de um comendador de Pacatuba.
Em 1900, Rodolpho estava em férias na Bahia quando foi informado sobre a nova epidemia de Varíola em Fortaleza. Aproveitando sua presença em Salvador, conseguiu aprender a fazer a vacina e a vacinar. Em seguida, comprou todos os equipamentos necessários para fabricar a vacina e dois bezerros e os trouxe para Fortaleza, desembarcando na cidade em 6 de dezembro daquele ano.
Iniciou o processo de inoculação dos bezerros tendo 3 insucessos até que concluiu que o material trazido da Bahia estava inativo. Conseguiu, de um conhecido de São Paulo, um novo material e, 3 dias depois da inoculação, as pústulas da doença atenuada apareceram nos animais.
No início de 1901, Rodolfo anunciou seu feito e convidou a população a se vacinar em sua própria residência, na Rua Visconde Cauhype, número 4, hoje Avenida da Universidade. Havia transformado sua casa em vacinogênio. Sem nenhuma ajuda do governo, em 4 meses Rodolpho vacinou 1.200 pessoas da cidade. Entretanto, a população da periferia não atendia seu chamado. Em agosto, Rodolfo comprou um cavalo e diariamente cavalgava até os subúrbios para vacinar as pessoas. Encontrou muita resistência.
Rodolfo era um homem alto, magro e de longa barba, que costumava usar uma comprida casaca preta. Conta-se que a primeira vez que apareceu por detrás das dunas a oeste da cidade, montado em um cavalo branco, chegou a ser comparado pelas pessoas daquelas favelas com o Cavaleiro do Apocalipse. Lira Neto, em seu livro “O Poder e a Peste – A Vida de Rodolpho Theóphilo”, descreve o episódio assim: “Quando se soube que ele estava vindo para vacinar os moradores daquele lugar, foi uma correria sem fim. Mães pegaram filhos pequenos ao colo e desabaram a correr, aos gritos, aterrorizadas. Outros meninos de toda idade e tamanho, fugiam por conta própria, aos pinotes, olhos arregalados, taboleiro afora”. Corria entre eles a ideia de que a vacina era uma desculpa que o governo inventara para acabar com os pobres e que Rodolfo era a própria peste disfarçada de gente.
Mas Rodolpho não desistiu. Para convencer aquela gente usava 3 métodos. Primeiro contava histórias fantásticas que envolviam santos como o Santo Jenner, na verdade o inglês inventor da vacina que, em sua história, aconselhava a todos aceitarem a vacina. Um segundo método era ameaçar os renitentes com multas pesadas que, na verdade, ele nem poderia aplicar pois não era agente do governo. Às vezes funcionava e às vezes não. Aí entrava o terceiro método. Pagava para vacinar. Tudo por sua conta.
O governo do oligarca Antônio Pinto Nogueira Accioly, passou a persegui-lo, acusando-o de desmoralizar as autoridades. Assim, perdeu sua cátedra no Liceu, foi acusado de charlatão, tendo sua cajuína e seu estabelecimento farmacêutico boicotados, entre outras coisas. Mesmo sob essas condições, vacinou pessoalmente, milhares de pessoas. Em 1902 não foi registrado um só caso de varíola na capital cearense. A Varíola estava extinta em Fortaleza.
Após anos sob pressão e para se defender, em 1907, Rodolpho enviou uma amostra de sua vacina para a avaliação do Instituto Manguinhos, atual Fiocruz, no Rio de Janeiro. A resposta chegou cheia de elogios à qualidade da vacina cearense.
Rodolpho Theóphilo, o Varão Benemérito da Pátria, continuou a vacinar, sem descanso, até próximo de seu falecimento, em 1932.
Fortaleza, 30 de março de 2020
(*) Professor do aposentado do Curso de Farmácia da UFC. PhD pela Universidade de Oxford. Coordenador do projeto Seara da Ciência da UFC.

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