Por
Romeu Duarte Junior (*)
"Cobogó é coisa de pobre!", bradou-me certa feita um
colega e amigo de forma tão categórica que quase perdia de mim esta última
condição. Na ocasião, amante dos materiais construtivos como todo arquiteto que
se preza, lembrei-me da célebre frase de Louis Khan: "O que quer ser um
tijolo?". Certamente, o preconceito não deve ser a argamassa da
construção. Todo material é digno e sua utilização numa obra adequa-se à sua
essência e às suas possibilidades. Há beleza e funcionalidade tanto numa parede
maciça de tijolo cru quanto numa extensa pele de vidro. São tecnologias
diferentes que às vezes se completam, num diálogo fascinante entre o singelo e
o complexo. Ah, se todos fossem simples e úteis como você, cobogó, o mundo
seria muito melhor, sem frescura...
Como tudo o que nos envolve, este item de obra, arquitetura e
design tem uma história. De origem recifense, o cobogó foi criado em 1929 por
um grupo de engenheiros, o português Amadeu Oliveira Coimbra, o alemão Ernst
August Boeckmann e o brasileiro Antônio de Góis, que denominaram a novíssima
peça juntando as primeiras sílabas dos seus sobrenomes. Lúcio Costa, o tal,
difundiu-o em suas obras modernistas como a releitura de uma herança da cultura
árabe, presente desde sempre na arquitetura colonial portuguesa. De uso
popular, atende também por combogó e elemento vazado, expressão esta talvez
mais adequada aos defuntos encontrados varados de balas nos cafundós. Conheci-o
nos corredores da Escola de Arquitetura da UFC. Sim, foi paixão à primeira
vista.
Espalhado por todo o Brasil, o cobogó é versátil: deixa passar o
vento, apara o sol criando belos jogos de luz e sombra, garante a exaustão do
ar quente e preserva a intimidade dos interiores, "livrando a mulher do
que a rua pudesse oferecer...", tal como dizia poeticamente Armando de
Hollanda, saudoso dos velhos muxarabis de Olinda. Inicialmente executados em
cerâmica por extrusão industrial, com ingênuos desenhos florais e geométricos,
os cobogós atuais são feitos de materiais diversos, até de porcelana e resina
plástica, com projetos elaborados por designers e produzidos através de
máquinas comandadas por computador. No começo, restrito aos banheiros e áreas
de serviço das casas populares, o cobogó, metido, ganha hoje espaço nas mansões
e nas exposições.
Portanto, foi com alegria e alívio que, passando pela Av. Pessoa
Anta, na Praia de Iracema (que parece recobrar a antiga vitalidade), deparei
com a fachada da Casa Cor Ceará 2024. Um véu cerâmico, perfurado e
serpenteante, muito bem construído, sugerindo aos olhos arranjos plásticos os
mais variados, chama a atenção do mais desavisado passante. "Quero ver
quem ainda terá a coragem de dizer que cobogó é coisa de pobre...", pensei
de mim para comigo. Se de dia a renda vermelha filtra e traduz os raios de sol em
arte, à noite o pano coleante inteiro transforma-se numa gigantesca luminária
via efeitos luminotécnicos. Há uma grande lição nisso tudo: É preciso conhecer
os materiais, o que nos podem dar. Na trama esplêndida da arquitetura, o
tradicional e o moderno irmanam-se.
(*) Arquiteto e
professor da UFC. Sócio do Instituto do Ceará. Colunista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 4/11/24. Vida & Arte. p.2.
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