segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

CAMINHOS DO CEARÁ: Icó, jardins de calçada e a lapinha de Almério

Por Izabel Gurgel (*)

Ana Stela da Silva estava grávida quando da procissão do Senhor do Bonfim de 1924, o acontecimento maior da vida de Icó, a cada primeiro de janeiro. O menino nasceria dezoito dias depois, dia 19.

Almério Silva seria um homem de ofícios e funções públicas. Chefe de gabinete do prefeito Aldo Marcozzi Monteiro (1939-2009), lembra-se dele marcando o chão para a instalação de barracas da festa do Senhor do Bonfim. Ele, com Aldo, cuidando da lapinha do Cruzeiro da Matriz de Nossa Senhora da Expectação, na antiga rua Larga, atual Largo do Théberge.

Almério foi sacristão, servidor do antigo Dner, 'ponto no teatro', aquele que, nos bastidores, dá as deixas para o texto se fazer bem dito em cena. Professor de Língua Portuguesa, graduado em 1981 na Federal da Paraíba, no campus de Sousa, a cerca de 120 km de Icó, Almério Silva viveu 72 anos. Encantou-se dia 28 de julho de 1996.

Naquele ano, os gêmeos Márcio e Marciano, seus afilhados, tomaram para si a responsabilidade de montar a lapinha da capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, nos fundos da Matriz.

Fica na antiga Rua do Meio, onde Almério morava, onde moram os gêmeos. É obra de uma vida inteira de Almério a mais visitada lapinha da cidade. Icó tem mais de uma centena de presépios, em espaços da vida pública e em residências. Digo que é uma cidade-lapinha.

Professora das professoras de Icó, Mazinha Maciel nasceu em 1924, no mesmo ano que Almério. Mazinha contava de si e da irmã Timinha, também professora, elas crianças, banhadas e arrumadinhas para o passeio da tarde. Em dezembro, a rota incluía presépios e lapinhas. Em especial, a da casa de Dona Berta e Seu Odeon na então Rua Grande, hoje Ilídio Sampaio.

Diz-se que a lapinha de Dona Berta ficou para Almério, mais do que afilhado do casal sem filhos, para quem Ana Stela prestou serviço. A mãe de Almério era conhecida pela aplicação ao trabalho. Com esmero, lavava roupa no rio, o Salgado, à margem do qual se desenhou Icó, cujo centro histórico foi reconhecido pelo Iphan como patrimônio nacional em dezembro de 1997.

Márcio diz: "Padrinho Almério não deixava a gente sossegado". Imagino Almério a ir e vir, feito agulha e linha em habilidosas mãos, tratando de dar sustentação a uma espécie de bordado que o antecedia, com o qual (se) compôs e haveria de perdurar, ultrapassando o tempo de uma vida humana. Um jogo da memória como aposta no futuro.

Também parteira, Dona Berta aprendeu, e tomou por devoção e ofício, os festejos do Natal. Ouvi da professora Maria de Lourdes Maciel de Melo Peixoto: "Dancei no pastoril de Dona Berta". A lapinha dos gêmeos, de Almério, de Dona Berta me faz pensar em outro cultivo das mãos na mesma rua do Meio: os jardins de calçada.

Conta-se a rua do Meio como 'a dos escravos'. Faz fundos com as duas das antigas casas senhoriais, as citadas rua Grande e Larga. Uma espécie de casas de serviço ou de serviçais, como até hoje existem entrada e elevador de serviço não exatamente para facilitar o fluxo da vida.

Passando um dia por lá, preste atenção. Todo nascimento é sagrado.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 10/11/24. Vida & Arte, p.2.

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