Por Raymundo Netto (*)
O Café Java, o original, foi fundado em
1886, num canto da Praça do Ferreira, quase em frente ao atual prédio da Caixa
Econômica, pelo popular Mané Coco, marmorista, bombeiro voluntário e um dos
personagens da historiografia do cinema no estado. Com influência francesa, sua
estrutura em madeira seguia a estética "art noveau", com uso de
lambrequins – elementos ornamentais recortados em madeira para adornar os
beirais para baixo e para cima –, convergindo na cumeeira – era um telhado de
duas águas –, e guardando a parte de cima da sua fachada, de ponta a ponta, uma
grade de taliscas também de madeira. Era nele que se reunia, anualmente, no 1º
de abril, a “tropa” responsável pela organização da “maior festa popular da
Fortaleza antiga”: o Festival da Potoca, ou, melhor dizendo, da mentira! Também
ali se encontravam os apreciadores da aguardente do Cumbe, trazida pelo Mané
Coco. Os seus clientes passavam pelo imenso “Cajueiro da Mentira” e colhiam de
seus galhos mais caídos os suculentos cajus para degustar com a boa pinga,
enquanto outros bebiam o cafezinho simples, coado na hora, jogavam dominó e/ou
esbanjavam seus sonhos, ideias e escritos. Entre eles, Ulisses Bezerra (27) e
Sabino Batista (24) sugeriram a um jovem amigo poeta, o irreverente Antônio
Sales (24), a criação de um grêmio literário. Ora, o Sales não curtiu. Disse:
“Só se fosse uma coisa nova, original e mesmo um tanto escandalosa, que
sacudisse o nosso meio e tivesse repercussão lá fora”. Ele não gostava de
formalidades, retóricas, discursos e academias. Mas, provocado, criou o título
e elaborou o seu “Programa de Instalação”, uma espécie de Estatuto, menos
oficial e mais debochado. Assim, em 30 de maio de 1892, em um imóvel alugado na
rua Formosa, 105, fundaram a mais original agremiação artístico-literária do
Ceará: a Padaria Espiritual (1892-1898). Depois do disputado evento, todos se
dirigiram para tomar um cafezinho no Café Tristão, do qual nunca ouvi falar. Na
verdade, nas Atas da Padaria Espiritual, não encontramos registro de nenhuma
“fornada” (sessão) dos “padeiros” (gremistas) que tenha acontecido no Café
Java, embora, ainda em 1892, após terminada uma delas, se dirigiram a ele.
Também sabemos que, quando da distribuição de seu informativo “O Pão”, os
padeiros se abancavam no Java como ponto estratégico de encontro e venda aos
seus leitores. Em 1920, porém, o prefeito mandou derrubar os quiosques, vítimas
do “progresso”. O Mané Coco havia vendido o Java há décadas e teria outro Café,
o Central, novo ponto de encontro dos últimos padeiros.
Quando houve o anúncio, pela Academia
Cearense de Letras, de um “outro Café Java”, também no Centro, mas em local
diferente do original, acompanhei. Estranhei tratar-se de uma “réplica”, o que
visivelmente não é, pois é totalmente diverso, não só no material da estrutura,
que é de ferro, como em toda a sua arquitetura e ornamentos.
Não sei se realmente esse negócio vai
vingar, se será possível, diante do eterno descaso ao Centro, realizar tais
programações culturais naquele espaço, que é bastante reduzido, além de ser
possivelmente uma onerosa manutenção. E dói demais assistir, logo ao lado, a
igreja mais antiga da cidade quase se desmanchando à própria sorte. Eu, da
forma como gosto e acredito em livros, acho que seria uma homenagem mais
relevante à Padaria, a publicação e a democratização do acesso à população
cearense da prometida coleção “Biblioteca da Padaria Espiritual”, composta de
cerca de 14 títulos desses padeiros, pois muita gente diz comemorar essa
agremiação sem nunca sequer ter lido uma dessas obras por eles escritas,
simplesmente porque não são acessíveis! “Fornecer pão de espírito aos povos em
geral” não era o objetivo maior da Padaria? Então, como diria Antônio Sales em
suas sessões: “Está aberta a fornada”.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 19/05/25. Vida & Arte, p.2.
Nota do Editor do Blog: Havia um problema
burocrático envolvendo a Prefeitura Municipal de Fortaleza e a empresa
concessionária do serviço que assumiria a gestão da cafeteria que, felizmente,
já foi sanado. No dia 10/06/25, a Academia Cearense de Letras (ACL), contando com apoio e patrocínio do seu presidente, o Prof. Tales de Sá
Cavalcante,
ofereceu uma recepção que acolheu muitos convidados, para um evento de
congraçamento.
Acad. Marcelo Gurgel
Carlos da Silva
Cad. 25 da ACL
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