Por Izabel Gurgel (*)
Flora descobriu a sombra naquela tarde de sábado.
A luz do sol entrava pelo vazio da área de serviço aberta para a cidade. E
banhava Flora pelas costas. A menina se encantou pelo desenho em movimento que
se alongava à frente no piso de madeira. Não sei se sabia que surgia dela
própria, nosso sol familiar, em contato com o sol de todas as manifestações de
vida. Sei que nos lembrou da graça e da força do encantamento pelo qual não
conhecemos.
O chão tão perto de quem tem um ano e vinte
e poucos dias, Flora se agachava para tocar a sombra, olhar pegando, como a
gente faz para ver melhor, o olho uma experiência outra de tato, o tato um
sentido outro de ver. Flora é nosso cinema.
Flora ouviu da mãe, no colo dela, a palavra
mar. No dia em que viu o mar, ouvindo o nome da coisa, Flora repetia
maravilhada a palavra tão pequena que abraça algo tão grande. Saber a palavra
fazia Flora saborear o mar ao dizê-lo. Cabe em mim o nome disso tudo que vejo?
Flora é filha de criaturas leitoras. Vive
em uma casa com livros. O pai escreve e edita livros. A mãe escreve, publica.
Flora brinca com eles. Identifica pessoas de sua convivência que estão em
alguns deles, associa outras as fotos e desenhos vistos ali, leva livros de uma
pessoa para outra, na brincadeira que pode mantê-la ligada e empenhada e
contente com o que está a fazer: ir e vir, dar algo para alguém, receber de
volta e levar para outro destino. Flora uma agulha, as linhas se sobrepõem. Ela
borda a superfície do mundo.
Flora presta muita atenção.
Às vezes penso que já aprendeu mais do que
nós. É uma mestra. Aprendemos com ela. As crianças nos ensinam, sabemos.
Cada criatura do convívio ganha da Flora um
novo nome. Uma combinação de sons que não para de nascer. Cada criança inaugura
o mundo. Nos faz pensar no mistério que é existirmos. Água, ar, au au, árvore,
folha, formiga, gente, rocha.
Flora tem tias gêmeas. Por que tem umas que
são duas? Não cabia tudo em uma? Fico pensando em como é o espanto dela. O
atrevimento já conhecemos.
Toda poros, como um dia fomos, Flora vive
em estado de contato, contágio, encontro. Imparável, a não ser quando dorme. E
pode rir e gargalhar durante o sono. Se alguém por perto ri do riso dela
dormindo, gargalha junto. Com o que sonha Flora? Já perguntei por aqui.
É palhaça. Um observatório, imita atos e
modos. Responde a resposta esperada para perguntas ensaiadas, sai do papel
quando não contamos que vá fazê-lo. Experimenta, repete, manobra, reina. Você
leu as reinações de Narizinho?
Escrevo Flora e você pode ler Antônia,
Bento, Clara. E seguir contando.
A superfície do mundo fica mais bonita com
o bordado da Flora.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 11/05/25. Vida & Arte, p.2.
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