quarta-feira, 12 de maio de 2010

RÉVEILLON DOS MILHÕES

Pelo terceiro ano consecutivo, Fortaleza torra, literalmente, montes de recursos, para oferecer, nos moldes de cidades com economia próspera e consolidada, um espetáculo de ostentação e exuberância, replicando um estrondoso Réveillon que anestesia, temporariamente, as crônicas mazelas do nosso dia-a-dia.
Não cabe aqui, neste instante, discorrer sobre os milhões de reais estourados durante os dezesseis minutos da queima de fogos de artifícios e dos exorbitantes pagamentos de cachês a artistas alienígenas que, por pouco tempo de apresentação, no aterro da Praia de Iracema, levaram boas somas para os seus estados de origem.
Há, por certo, um outro milhão em jogo, aliás, puramente jogado na mídia, como sendo o contingente de pessoas reunidas naquele espaço aberto de beira de praia, durante o Réveillon de 2010, para ver o espetáculo de luz e som, capaz de ferir as retinas e estourar os ouvidos, tudo isso para ganhar os aplausos da multidão que no outro dia vai chorar o leite derramado, sem ter mais o que fazer ou dizer. Pobres garis, atores mal pagos desse “day after”.
Considerando o parâmetro adotado, de cinco pessoas por metro quadrado, para conter essa avalanche de gente, seria necessário dispor, naquele exíguo pedaço de chão, nada menos do que duzentos mil metros quadrados, ou vinte hectares inteiramente livres de edificações, o que somente seria conseguido se boa parte do povo fosse de mar adentro, respeitando-se, no caso, o limite territorial das milhas náuticas, e com farta distribuição de bóias aos convivas, para coibir eventuais naufrágios.
A despeito de tudo isso, para uma urbe que com seus arredores possui cerca de três milhões de habitantes, a cifra em questão revelaria, até de forma grosseira, que uma de cada três pessoas da capital passara a virada do ano na Praia de Iracema. Se forem conjeturadas algumas exclusões, como as crianças e os idosos, os que viajaram para o interior ou outros estados, e outros mais que não têm o dom da ubiqüidade, pode-se intuir que a proporção de presentes seria de um para dois, o que daria a entender que só poucos permaneceram em casa, comemorando, com familiares, a entrada do Ano Novo, nesta Fortitudine de Nossa Senhora da Assunção, ou mesmo dormindo o sono dos justos e dos injustos, sozinhos ou acompanhados.
É balela supor que expressiva parcela do tal milhão fosse engrossada por centenas de milhares de turistas aqui aportados à conta exclusiva do propalado Réveillon, haja vista a existência de motivações até mais “nobres” do que essa, e que avalizam o fluxo turístico para Fortaleza. É bom lembrar que o número de camas da rede hoteleira local é inferior ao de leitos hospitalares, aos quais se agregam os disponíveis em abrigos institucionais e os ocupados por indivíduos retidos por invalidez, dando, como certo que nenhum dos seus ocupantes, naturalmente, foi ao aterro de Iracema, ver a queima do dinheiro público. E é porque as contas do Réveillon da Prefeitura, referentes ao ano passado, sequer foram aprovadas pelo TCM.
Claro está que, ainda que fossem consideradas as ruelas das imediações daquele logradouro, há uma absoluta incompatibilidade entre continente e conteúdo, e nem formando pirâmides humanas, uns sobre os outros, chegar-se-ia ao redondo e midiático milhão, atribuído à multidão que de tão comprimida nem conseguia acompanhar o Zeca Pagodinho na sua cantoria de respeitáveis cifras: “Deixa a vida me levar” pode até se deixar substituir por “deixa eu levar os milhões dos incautos cabeças-chatas”.
Agindo dessa forma, é bem provável que a mídia tenha se reportado a um popular cereal encontrado no Mercado São Sebastião, e que no caso do “Réveillon dos Milhões” tenha virado manchete, por conta de uma super-avantajada dimensão, digna de figurar no Guiness Book.
Fica aqui um registro: nada contra festas, que afinal é a alegria do povo, mas que elas só aconteçam, quando esse mesmo povo não tiver necessidades maiores, que precisam ser cobertas pelo poder público.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Médico e economista

* Publicado In: Café literário. Fortaleza, 16 de março de 2010. p.3.

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