segunda-feira, 7 de abril de 2025

O MUNDO DE CABEÇA PARA BAIXO

Por Heitor Férrer (*)

Cheguei a Fortaleza em março de 1968. Vivíamos em plena ditadura militar, comandados pelo segundo marechal à frente do país e sob forte influência dos Estados Unidos. O mundo encontrava-se em uma falsa paz, dominada pelo medo da Guerra Fria, com suas ogivas nucleares apontadas de ambos os lados — soviéticas e norte-americanas. Durante décadas, apesar das diferenças entre republicanos e democratas, o Ocidente manteve-se unido. A Europa, fortalecida, seguia como um pilar fundamental no embate geopolítico contra a União Soviética.

Essa estabilidade relativa sustentou-se até a ascensão de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos. Com sua chegada ao poder, as estruturas geopolíticas estão abaladas e o Ocidente se vê subitamente enfraquecido. Trump vira as costas para os aliados históricos e, de maneira alarmante, parece se alinhar a regimes autoritários, legitimando posturas expansionistas como a da Rússia. A ucrânia foi invadida e está, diariamente, sendo destruída aos olhos do mundo.

O que antes era impensável tornou-se realidade. A política externa dos Estados Unidos, outrora guardiã da liberdade e da estabilidade global, deu uma guinada que fragilizou alianças estratégicas e colocou a Europa em situação de vulnerabilidade. Trump chegou ao ponto de ameaçar a OTAN, um pilar da segurança ocidental, colocando em xeque a força do bloco que, por décadas, serviu como barreira contra o expansionismo de regimes autoritários. Mais recentemente, um de seus principais aliados, o empresário Elon Musk, chocou o mundo ao fazer um gesto que remete ao genocida Adolf Hitler.

O mais espantoso foi a reação do público presente: aplausos. Esse episódio, que deveria gerar indignação e repúdio unânime, revela o quanto a normalização de discursos extremistas e antidemocráticos avançou. Seu vice-presidente, em visita à Europa, critica uma suposta censura no continente e omite-se diante das brutalidades cometidas por ditaduras como Rússia, China, Turquia e Coreia do Norte. Só faltou acenar para Cuba e Nicarágua. O silêncio seletivo diz muito sobre a inversão de valores que estamos vivendo.

O mundo, outrora dividido entre forças democráticas e regimes autoritários, encontra-se em uma confusão sem precedentes. O líder da maior potência ocidental tornou-se um fator de desestabilização, não de união. A ascensão de Trump trouxe consigo um questionamento profundo sobre o futuro da democracia e da ordem internacional. O que antes parecia sólido agora está por um fio. O Ocidente, outrora coeso e forte, precisa reagir antes que seja tarde demais.

(*) Médico e deputado estadual (Solidariedade).

Fonte: Publicado In: O Povo, de 7/03/2025. Opinião. p.23.


domingo, 6 de abril de 2025

MÉDICAS NAS ACADEMIAS DE MEDICINA DO CEARÁ

Como evento ápice das comemorações dos 30 anos da fundação da Faculdade de Medicina do Ceará, a Academia Cearense de Medicina (ACM) foi instalada, oficialmente, a 12 de maio de 1978, em solenidade que empossou os seus 26 membros fundadores, todos eles homens, conformando um fato até condizente para a época.

Ao contrário de outras academias literárias, que levaram décadas para acolher o segmento feminino, a ACM foi mais rápida nesse tocante da busca equânime de gênero, porquanto o acesso feminino aos seus quadros acadêmicos ocorreu em seu décimo-primeiro ano de funcionamento, quando a Dra. Glaura Ferrer Dias Martins, empossada em 15/09/1989, foi a primeira mulher admitida nesse sodalício.

Ao todo, já foram 14 mulheres eleitas e empossadas como membros titulares da ACM, das quais doze seguem vivas, sendo duas dessas, as acadêmicas Glaura Ferrer Dias Martins (cardiologista) e Márcia Alcântara Holanda (pneumologista), integrantes do quadro de membros honoráveis. As duas que voltaram ao Pai foram as acadêmicas Maria Gonzaga Pinheiro (anestesiologista) e Lise Mary Alves de Lima (hemoterapeuta).

As atuais dez confreiras: Adriana Costa e Forti (endocrinologista), Ana Margarida Arruda Rosemberg (pneumologista), Elizabeth De Francesco Daher (nefrologista), Lúcia Maria Alcântara de Albuquerque (radioterapeuta), Marta Maria das Chagas Medeiros (reumatologista), Maria (Helena) da Silva Pitombeira (hematologista), Maria dos Prazeres Ferreira Rabelo (pediatra), Maria Zélia Petrola Jorge Bezerra (patologista clínica), Sara Lúcia Ferreira Cavalcante (anestesiologista) e Sílvia Maria Meira Magalhães (hematologista) conferem brilho a arcádia médica cearense com suas presenças, propiciando um toque muito especial, mercê das boas qualidades técnicas e morais que possuem.

Com efeito, quando convocadas para funções diretivas ou mesmo designadas para tarefas específicas de interesse da ACM, elas as realizam com diligência, precisão e notável competência.

Fundada em 29 de outubro de 2015, em Fortaleza, a Academia Cearense de Médicos Escritores (ACEMES) reúne médicos cearenses que, além de sua atuação na área da saúde, contribuem com produções literárias. O seu quadro de fundadores foi constituído, originalmente, de 32 homens e nenhuma mulher.

Atualmente, há apenas duas mulheres na ACEMES: a pediatra Maria Dione Mota Rola, que foi a primeira confreira, tendo sido empossada em 1º de junho de 2017, e Christiane Chaves Leite, também pediatra, que tomou posse em 30 de janeiro de 2025. No entanto, diante do surgimento de novas vagas na sequência da reforma estatutária, ora em andamento, por certo, a ACEMES dará acolhida a mais médicas escritoras radicadas no Ceará, cujos méritos literários são plenamente reconhecidos, alçando-as aos umbrais acadêmicos.

Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Da ACM (Cad. 18) e da ACEMES (Cad. 24)

* Publicado In: Revista AMC (Associação Médica Cearense). Março de 2025 - Edição n.42. p.22 (online).


FAMÍLIA CRISTÃ: um refúgio de amor, graça e discipulado

Por Pe. Reginaldo Manzotti (*)

No mês de fevereiro, a Igreja Católica traz como temática a Sagrada Família, pois foi nela que Jesus viveu antes de começar a sua vida pública, o modelo e o ideal de toda família humana.

Aproveito para refletir sobre os valores que devem nortear a vida familiar, com destaque para a figura do casal, que é o elo fundamental de toda a estrutura familiar. O casamento, como sacramento, representa o compromisso de amor, respeito e fidelidade, que serve de base para o fortalecimento das relações entre os membros da família.

Assim como a Sagrada Família, a família cristã católica é chamada a ser um testemunho de vida, vivendo de acordo com os ensinamentos da Palavra de Deus. Não são necessárias grandes coisas para ser discípulo de Jesus, na família. Quando o marido é um bom esposo e pai, a esposa é uma boa mãe, e os filhos formam um elo de unidade e cumplicidade, a família se torna uma verdadeira expressão do amor divino. O mundo precisa disso.

Nas Sagradas Escrituras, desde o livro do Gênesis, somos chamados a compreender o papel do homem e da mulher como complementares. Ambos devem estar preparados, curados e equilibrados para um relacionamento saudável. Claro, ninguém é perfeito! Não devemos esperar a perfeição para nos entregarmos ao matrimônio. Precisamos pedir a Deus: "Senhor, quero estar curado para entrar em um relacionamento."

Deus tirou a carne da carne, não devemos cair na teoria de que a mulher é inferior, porque foi criada posteriormente. O Gênesis revela a igualdade entre Adão e Eva, mostrando que, na criação, nada era completo até que ambos se unissem, sendo imagem e semelhança de Deus. Parece que isso se perdeu ao longo do tempo.

Muitas pessoas têm medo de casar-se por carregar o estigma de que o casamento será infeliz. Elas já não acreditam mais na felicidade a dois e pensam que é melhor ser solteiro, "ficante", ter relacionamentos passageiros, namoros aqui e ali, do que assumir um compromisso. Contudo, casamento dá trabalho, família dá trabalho, ser padre dá trabalho, ser celibatário também exige esforço. Mas a grande questão é: o que queremos para nossa vida? Lembremos de uma coisa: está na essência do ser humano o desejo de amar. A solidão não faz parte da nossa natureza.

Quando tentam pegar Jesus de forma sorrateira, como é descrito no Evangelho (cf. Mc 10, 2-12), perguntando sobre o casamento, ele explica: "No começo, não era assim". Moisés já havia dado um passo importante em defesa do casamento, pois, antes dele, as pessoas se divorciavam por qualquer motivo. Se o marido não gostasse da expressão 'azeda' de sua esposa ao acordar, ele se divorciava.

Moisés então deu um passo, protegendo as mulheres, dizendo que não seria aceitável o divórcio por qualquer razão. Era necessário, então, escrever uma carta explicando o motivo. Mas Jesus vai além e diz: "no início, Deus não queria o divórcio". Ele remonta à essência do Gênesis, quando o homem e a mulher se tornam uma só carne. Por isso, a preservação da família é tão importante.

A Igreja tem como missão dar suporte emocional aos casais, para que não cheguem ao extremo do divórcio. Não se trata de insistir em um discurso de condenação ("é pecado, é pecado"), mas sim de incentivar os casais a se nutrirem de Deus, do perdão e dos valores cristãos, pois assim a família permanecerá unida. Porém, quando os casais se afastam de Deus, se fecham ao diálogo e não praticam o perdão, a separação se torna inevitável.

Deus, desde o início, criou o homem e a mulher para a felicidade. É possível ser feliz no matrimônio. O casamento é uma bênção, e os filhos são dons de Deus. Envelhecer juntos não é apenas romantismo, mas uma decisão diária de amar, de ser resiliente nas dificuldades, de perdoar os erros do cônjuge e de valorizar mais as qualidades do que os defeitos. Também é essencial abandonar a comparação com os estereótipos de beleza.

Cada pessoa tem sua própria beleza. A comparação nunca traz benefícios. Decidir amar todos os dias, vendo as rugas aparecerem e as fragilidades surgirem, é escolher amar verdadeiramente aquele com quem você decidiu envelhecer lado a lado.

Que a Sagrada Família de Nazaré, abençoe todas as famílias!

(*) Fundador e presidente da Associação Evangelizar é Preciso e pároco reitor do Santuário Nossa Senhora de Guadalupe, em Curitiba (PR).

Fonte: O Povo, de 22/02/2025. Opinião. p.18.

Manda prender a IA

Por Rev. Munguba Jr. (*)

Em 1956, surge o embrião do conceito de Inteligência Artificial, mas foi apenas em 2022 que essa tecnologia começou a se popularizar, especialmente com o ChatGPT, uma das mais reconhecidas aplicações da Inteligência Artificial na atualidade.

Questionando o ChatGPT sobre a influência da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid) nas ações humanitárias, recebemos como resposta uma sentença de morte cultural e geracional. Ele destaca diversos aspectos da atuação da Usaid em diferentes nações, visando a implantação da Agenda Woke, com o desígnio de destruir os valores conservadores da sociedade.

Revistas e jornais destacam ONGs como Sleeping Giants, Checagem de Fatos, o Centro Internacional de Jornalismo (ICFJ) e várias outras organizações progressistas, como beneficiárias de recursos para disseminar valores incompatíveis com os princípios judaico-cristãos.

O ministro Alexandre de Moraes tem imposto restrições à liberdade de todos os que possuem pensamentos dissidentes aos seus, especialmente quando essas pessoas exercem alguma influência. No entanto, ele ultrapassou os limites ao aplicar um poder desproporcional, condenando a 17 anos de prisão em regime fechado mulheres de sacristia, tias do WhatsApp com a Bíblia nas mãos, figuras anônimas e politicamente ingênuas.

Após o dia 20 de janeiro deste ano, a narrativa saiu do controle do "deep state". Donald Trump se tornou o primeiro presidente em exercício dos EUA a participar de uma final do Super Bowl, e foi incrível. No último domingo, 9 de fevereiro, ele foi ovacionado pela multidão no estádio. Israel celebra as notícias de um novo tempo para o Oriente Médio, enquanto a paz acena para várias partes do mundo.

A onda conservadora está sendo surfada por uma significativa maioria em todo o mundo, tendo como base o "Estado Mínimo" e, essencialmente, a defesa da liberdade para a iniciativa privada. Embora a pauta de costumes permaneça em segundo plano, o que realmente une aqueles que valorizam a liberdade é a pauta financeira: menos impostos, menos burocracia, menos regulamentação e menor interferência governamental.

Se uma democracia precisa de alguém para defendê-la, já não é uma verdadeira democracia. A democracia pressupõe a existência de leis claras que devem ser seguidas por todos, indistintamente. Ela não necessita de um defensor; se existe, é porque esse 'defensor' se tornou, na verdade, um ditador, suprimindo qualquer vestígio de caráter democrático.

A Bíblia nos diz: "Aquele que não trabalha, também não coma." E nos lembra: "A benção do Senhor é que enriquece e não acrescenta dores."

Acho que "alguém" precisa mandar prender a IA.

(*) Pastor Munguba Jr. Embaixador Cristão da Oração da Madrugada e Erradicação da Pobreza no Brasil e presidente da Igreja Batista Seven Church.

Fonte: O Povo, 15/02/2025. Opinião. p.18.


sábado, 5 de abril de 2025

JACKSON SAMPAIO: o professor e médico que transita entre a ciência e a sensibilidade IV

Por Lara Vieira, texto Fabio Lima, foto

O POVO - No pós-Covid, qual foi a Uece e a reitoria que o senhor encontrou?

Jackson Sampaio - Observei uma convivência muito boa entre alunos e professores, especialmente na pesquisa. A universidade, mesmo com dificuldades, sobrevive, muitas vezes, apesar da gestão. Houve uma reitoria interina, porque eu não pude mais participar do processo eleitoral de um novo reitor. Quando chegou o momento da eleição, o novo reitor foi o meu vice por oito anos. Então, eu me senti muito à vontade na universidade em geral.

Era um ambiente que recuperou muito do que eu estava fazendo, também muito da herança deixada pelos ex-reitores Manassés (Fonteles) e (Assis) Araripe. Mas havia dois candidatos que queriam justamente essa ruptura. Eles sabiam que, se o Hidelbrando [atual reitor] ganhasse, ele levaria essa herança consigo.

Então, eles entraram com uma manifestação no Tribunal de Contas do Estado (TCE), alegando corrupção. Se houvesse algum problema nas minhas contas, tanto eu quanto meu vice, que era o Hidelbrando, seríamos responsabilizados, o que ajudaria na vitória deles.

Eu, mesmo debilitado me recuperando em casa, entrei em ação. Contatei o TCE e conseguimos agilizar a análise das minhas contas. Hoje tenho seis anos de contas analisadas. Até o momento, a denúncia não resultou em nada. O ambiente também tem seus lados tóxicos, suas pontas negativas. Isso foi uma ação absolutamente antidemocrática.

O POVO - Muitos jovens hoje questionam o valor do ensino superior, principalmente pela dificuldade de conseguir emprego após a graduação. Como você enxerga essa situação?

Jackson Sampaio - Um ponto a se entender é que a universidade é um local de produção de conhecimento, não apenas como um passaporte para conseguir um emprego. Quando a universidade é vista apenas como uma preparação para o emprego e o aluno não consegue entrar nesse mercado, isso não é um fracasso da universidade, mas sim de um modelo econômico que não valoriza a formação acadêmica.

Na sociedade capitalista, o trabalho muitas vezes exige três coisas: dinheiro, satisfação pessoal e segurança. Porém, poucos setores oferecem essas três coisas. O mercado fragmenta isso para evitar que as pessoas sejam autossuficientes, criando uma individualidade que dificulta a luta coletiva, como a sindicalista.

A universidade é um lugar de produção de conhecimento, amadurecimento intelectual e cidadania plena, que, por acaso, também pode proporcionar entrar no mercado de trabalho. No entanto, se o mercado não valoriza a educação superior e prefere pagar mais barato para profissionais com formação técnica, a universidade enfrenta um desafio. Mesmo assim, ela deve manter seu compromisso com a formação acadêmica e cidadã.

SBPC/ Expansão

Em 2005, Jackson Sampaio, na época diretor do Centro de Ciências da Saúde (CCS), foi responsável por trazer para a Uece a 57ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A realização do evento impulsionou a expansão do campus Itaperi, com construções como da Reitoria e novos blocos

Covid

Vítima da Covid, o professor Jackson Sampaio enfrentou o período dramático. Chegou a ter alucinações, experiência que ele transformou em estudo científico. Foi uma forma de ressignificar o sofrimento, inclusive através da poesia. “Mas eu disse a mim mesmo que não queria que minha poesia fosse um canto fúnebre”, conta

Atuante/ Pós-graduação

Mesmo aposentado, Jackson Sampaio segue atuando no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva (PPSAC) e Grupo de Pesquisa Vida e Trabalho (GPVT) da Universidade Estadual do Ceará (Uece)

Literatura

Também foi um dos escritores que integravam o grupo Siriará, movimento levantado na década de 1970 e que reuniu alguns dos grandes nomes da Literatura Cearense da década de 1980.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 24/03/25. Páginas Azuis. p.4-5.

JACKSON SAMPAIO: o professor e médico que transita entre a ciência e a sensibilidade III

Por Lara Vieira, texto Fabio Lima, foto

O POVO - A respeito de seu período como gestor na Uece, há algum projeto que o senhor considere um "filho favorito"?

Jackson Sampaio - Eu sempre tive a consciência de que boa parte do que realizei foi dar continuidade a projetos iniciados por outros. A produção no serviço público é contínua. Claro, tenho projetos que considero especiais, como o Mestrado em Saúde Pública. Ele foi o quarto mestrado da Uece e, com um ano de criado, foi o primeiro a ser recomendado pela Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior].

Como Pró-Reitor, também iniciamos uma política de formação de professores e decidimos criar um doutorado em Saúde Pública. Para isso, fizemos uma parceria com o Unifor e a UFC, que também tinham mestrados na área. Como nenhum dos três mestrados alcançava a nota 4 individualmente, optamos por uma colaboração para viabilizar o doutorado de forma mais rápida.

O doutorado tinha dois objetivos principais: antecipar em pelo menos oito anos a formação de doutores em Saúde Coletiva no Ceará e fortalecer os mestrados para que cada instituição pudesse, no futuro, criar seu próprio programa. E a estratégia foi bem-sucedida, acelerando a formação de doutores e permitindo que as três universidades desenvolvessem seus próprios doutorados.

O POVO - Durante a pandemia de Covid-19, o senhor enfrentou uma experiência pessoal grave com a doença. Como foi isso?

Jackson Sampaio - Em 2020, eu estava na gestão da universidade e iria terminar meu mandato em 22 de maio. O governo do Ceará emitiu um decreto com o isolamento social e a adoção do trabalho remoto em 16 de março. Eu precisei suspender o processo eleitoral que já estava em andamento.

No dia 22 de abril, fui internado. O tempo de UTI foi de 30 dias, dos quais 20 dias intubado. Após mais uma semana sem intubação na UTI, fui transferido para um leito hospitalar, onde permaneci por três semanas. Ao todo, fiquei 76 dias alimentado por sonda nasal enteral, o que "aposentou" meu estômago nesses dias. A intubação também afetou a traqueoplastia, porque eu respirava artificialmente.

O capacete Elmo ainda não havia sido criado. Afinal, fui um paciente da “primeira leva” da Covid. Quando voltei para casa, precisei de dois meses e meio de atendimento domiciliar. Foi quando iniciei a batalha para ganhar peso, algo sempre difícil para mim, especialmente com a idade e as condições impostas pela pandemia. Até hoje, consegui recuperar 19 dos 25 quilos perdidos.

Após a internação, pedi meu prontuário médico, que tinha mais de 2.800 páginas. Nele, vi que tomei mais de 20 remédios diferentes, incluindo três psiquiátricos, pois os sensores indicavam que eu estava alucinando ou delirando. Fiquei irritado por terem me dado esses medicamentos, pois eu queria ter alucinado de maneira mais livre.

O POVO - Em algum momento do pós-doença o senhor ressignificou o que passou?

Jackson Sampaio - Durante o atendimento domiciliar, vi uma psicóloga algumas vezes e comecei a falar sobre as alucinações, anotando tudo. Sem perceber, estava criando um estudo de caso sobre mim mesmo e decidi escrevê-lo como um estudo científico.

Esse já foi um processo de ressignificação. Pensei: "A Covid vai me dar, pelo menos, um ponto no currículo." Hoje eu fico muito feliz com ele.

Recentemente, reli e fiquei emocionado, porque fui eu quem viveu essa história. Eu estou o tempo todo ressignificando essa história também na poesia. Mas eu disse a mim mesmo que não queria que minha poesia fosse um canto fúnebre.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 24/03/25. Páginas Azuis. p.4-5.


JACKSON SAMPAIO: o professor e médico que transita entre a ciência e a sensibilidade II

Por Lara Vieira, texto Fabio Lima, foto

O POVO - O senhor morou um tempo no Rio de Janeiro, quando ingressou na militância do Movimento Brasileiro de Reforma Psiquiátrica e também de Reforma Sanitária. Como foi isso?

Jackson Sampaio - Eu já estava formado há quase 10 anos quando eu percebi que não queria mais continuar apenas no serviço hospitalar. Era o momento de voltar ao que mais gostava: estudar.

Minha esposa e eu pegamos nossos três filhos e decidimos: "Vamos para o Rio de Janeiro fazer mestrado!" Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), participei do Movimento Brasileiro de Reforma Sanitária e também fui convidado a presidir a Sociedade Brasileira de Neurologia e Psiquiatria.

Atuei pelo Instituto de Medicina Social da Uerj e no Hospital Psiquiátrico Pedro II, onde fui diretor de uma unidade e integrei o hospital a um projeto da Organização Pan-Americana de Saúde, focado em testar modelos de reforma psiquiátrica. Então, eu fui para a 8ª Conferência Nacional de Saúde como delegado, onde trabalhamos na modelagem do Sistema Único de Saúde. Depois, seguimos para a luta para incluir o SUS na Constituição de 1988.

No entanto, a Constituição não estabeleceu o SUS diretamente como lei autoaplicável; era necessário criar uma lei orgânica para regulamentá-lo. A batalha para aprovar essa lei foi intensa, e ela acabou sendo aprovada em 1990. No entanto, quando a lei foi sancionada, o então presidente Fernando Collor de Mello impôs uma série de vetos, principalmente nos mecanismos de controle social e participação popular.

Quando Collor foi afastado, Itamar Franco assumiu a presidência e, por meio de negociações, grande parte dos vetos de Collor foi revertida. A Lei Orgânica da Saúde foi aprovada em dezembro de 1990, mas como o orçamento da União para 1991 já havia sido aprovado sem a inclusão do SUS, não foi possível implementá-lo imediatamente. Começou, então, uma nova luta para incluir o SUS no orçamento da União, o que só foi conquistado em 1992.

"A universidade é um lugar de produção de conhecimento, amadurecimento intelectual e cidadania plena, que, por acaso, também pode proporcionar entrar no mercado de trabalho".

O POVO - O SUS que o senhor sonhava naquela época corresponde ao que temos hoje?

Jackson Sampaio - O SUS que temos hoje é um grande avanço, mas ainda distante do que sonhávamos na 8ª Conferência Nacional de Saúde. Naquele momento, queríamos revolucionar o modelo vigente e inverter a lógica existente, colocando a atenção primária como ponto de partida e não como algo secundário ou marginal. A ideia era que a atenção primária fosse capaz de resolver pelo menos 70% dos problemas de saúde da população, enquanto os demais 30% seriam encaminhados para a atenção secundária [ambulatórios especializados] ou terciária [hospitais].

No entanto, no meio do caminho, o avanço do neoliberalismo se manifesta na terceirização e precarização dos contratos de trabalho. O poder público passou a contratar cooperativas médicas, empresas terceirizadas e profissionais como pessoa jurídica (PJ), com contratos temporários de seis meses a um ano. Esse modelo compromete a qualidade da assistência e fragiliza os trabalhadores do setor.

Além disso, um dos desafios que enfrentamos é a judicialização da saúde. Muitas pessoas, especialmente das classes médias urbanas, começaram a contratar advogados para garantir na Justiça o acesso a medicamentos caros, muitas vezes recém-lançados e com eficácia questionável. O problema é que, em cidades pequenas, um único tratamento judicializado pode consumir grande parte do orçamento da saúde pública. Ainda assim, hoje o SUS é fundamental para o Brasil. Se ele não existisse, o que teria sido de nós durante a pandemia da Covid-19?

O POVO - E quais os impactos desse modelo atual nos tratamentos da saúde mental?

Jackson Sampaio - É extremamente prejudicial. A elaboração de um projeto terapêutico para um grupo de pacientes pode levar, no mínimo, um ano e meio. Mas como liderar um projeto terapêutico com profissionais com contratos de trabalho de apenas um ano, sem garantia de renovação, comprometendo a continuidade do tratamento?

Desde 1985, com mais de 40 ministros da saúde, a descontinuidade das políticas públicas tem sido um grande desafio. O SUS foi projetado de forma progressiva, mas na prática, a implantação foi desorganizada. Em Fortaleza, por exemplo, a cidade, com 2,5 milhões de habitantes, deveria ter 25 Caps, mas conta com apenas 16, sobrecarregando as equipes e com estruturas inadequadas.

Em grandes metrópoles como Fortaleza, o SUS enfrenta sérias dificuldades, enquanto em cidades médias o sistema até funciona melhor. Além disso, a realidade demográfica exige soluções regionais diferenciadas, como no Amazonas, onde o acesso ao SUS é muito mais difícil.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 24/03/25. Páginas Azuis. p.4-5.


 

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