Entrevista:
Daniela Nogueira Fotógrafo:
Aurélio Alves
Há um ano na direção do Mosteiro dos Jesuítas, em
Baturité, pároco planeja o centenário da casa, antiga Escola Apostólica. Ao O
POVO, ele cita, de forma recorrente, o também jesuíta papa Francisco, quando
reverbera as ações da "Igreja em saída" e admite que os padres
precisam sair mais das sacristias e se aproximar do povo
Foi no dia 19 de março, no ano passado, que padre
Eugênio Pacelli recebeu o convite para a missão que hoje desempenha – diretor do
Mosteiro dos Jesuítas, em Baturité. O sacerdote passa
a coordenar a imponente casa de pedra, de retiros e de acolhida que chega aos
100 anos neste 2022.
O menino Eugênio saiu da pequena Ibiapina, sua
cidade natal na Serra da Ibiapaba, para estudar na Capital, no Colégio Santo
Inácio, onde anos depois se tornaria diretor. Após sete anos entre a direção
geral e a direção pastoral da escola, o sacerdote se dedica ao Mosteiro e ao
Polo Universitário Santo Inácio. Admite que sempre ocupou funções de gestão,
mas se realiza mesmo é no pastoreio, na condução do outro ao encontro com Deus
e consigo.
Talvez por isso cultive com tanta alegria a
celebração da Noite da Misericórdia, que chegava a arrebanhar 5 mil pessoas na
quadra do colégio, às segundas-feiras, antes da pandemia. Recusa-se a dizer que
seu nome atrai a multidão. As pessoas vão porque têm fome de Deus, afirma. Na
manhã em que recebeu O POVO no Colégio Santo
Inácio, padre Eugênio reitera seu carisma jesuíta quando diz da acolhida e do
serviço ao próximo, indissociáveis para a prática da fé. Fala em pandemia,
vacina e política, indispensáveis para o respeito à ciência.
Padre Eugênio, pioneiro em Fortaleza no abraço a
casais em segunda união, não tem mais vagas para celebrar batizados e
casamentos por todo este ano. Aqui, revela gostos e hábitos. Gosta de dormir
até mais tarde nas folgas. Lê de Santo Agostinho a Leandro Karnal. Reconhece-se
nos versos livres, doces e rurais de Cora Coralina. E torce pelo Fortaleza.
O POVO –
Como o senhor se sentiu ao assumir a direção do Mosteiro?
Padre
Eugênio Pacelli – Eu assumi no ano passado, no dia 19 de março. Fui
destinado pelos meus superiores para dirigir aquela casa centenária. E sempre
gosto de dizer que eu estou onde os meus superiores me enviarem. Na Companhia
de Jesus, a gente faz um voto muito especial de obediência, e quem obedece
nunca erra. E eu sempre me proponho a obedecer. Foi em plena pandemia que
recebi o convite para ir para aquela casa. Depois de um tempo aqui, no Colégio santo
Inácio, aceitei essa missão com muito carinho. Um padre e um irmão jesuítas
foram comigo para esse grande desafio de preparar a casa para o centenário
dela.
O POVO –
Quais são as mudanças que o senhor já fez neste um ano no Mosteiro?
Padre
Eugênio – Quando eu assumi, a
primeira coisa que eu fiz foi conhecer melhor a história do Mosteiro, para
saber melhor o terreno onde eu estava pisando. Descobri que aquele terreno é
sagrado, tem muitas vidas doadas, muitas vidas entregues, de padres, irmãos e
vizinhanças que passaram por ali e deixaram sua marca, seu legado na história.
Quando assumi o Mosteiro, eu tinha três pilares para intensificar — o
pilar da espiritualidade, uma casa que favorece a experiência com Deus através
da espiritualidade inaciana, do contato com a natureza, consigo mesmo e com os
outros, para encontrar Deus em todas as coisas e todas as coisas em Deus. O
Mosteiro também é cultura. Ali nós temos obras de cultura que já não pertencem
mais a ele, pertencem ao povo. E o povo tem direito de conhecer toda a cultura
criada e celebrada naquele espaço. A gente está abrindo um museu, em que vamos
contar toda a história do Mosteiro. E outro pilar muito importante é o social.
Aquele mosteiro por muito tempo se caracterizou por ser um espaço de ação social.
Os nossos padres e irmãos que moravam ali sempre se preocupavam porque uma fé
sem ação concreta é falha. O Mosteiro tem esse chamado de ser uma casa aberta
aos pobres, de modo especial às pessoas que moram ali ao redor — uma casa
de acolhimento, de assistência social e de promoção humana e profissional.
O POVO –
O Mosteiro está completando 100 anos neste 2022. O que já há programado?
Padre
Eugênio – Toda a programação
está sendo feita em cima desses três pilares: espiritual, cultural e social.
Durante esse tempo vamos favorecer às pessoas que quiserem uma experiência dos
exercícios espirituais de Santo Inácio. Vamos saborear essa experiência que
Inácio deixou como legado. Vamos oferecer cursos de aprofundamento da
espiritualidade inaciana, uma imersão no conceito fundamental do encontro com
Deus e consigo mesmo. Na parte cultural, teremos exposições contando a história
do Mosteiro, mostrando objetos artísticos e culturais que fazem parte do
Mosteiro. E na dimensão social, faremos ações sociais de promoção humana para a
população, como cursos profissionalizantes e cooperativas. Nossa finalidade é
ajudar aquela população, não só dar alimento, mas favorecer o desenvolvimento
profissional. Uma fé, para ser verdadeira, cristã, movimenta o coração, mas
movimenta os pés e as mãos no acolhimento.
O POVO –
Agora como fica sua relação com o Colégio Santo Inácio e com o Polo
Universitário?
Padre
Eugênio – Depois de 10 anos na
Paróquia do Cristo Rei, eu fui destinado ao Santo Inácio, que estava numa
situação muito complicada. Vim com a missão de fazer um distrato com a
Marquise, tinha um distrato para ser feito em que o colégio teria que andar com
os pés e mostrar sua identidade própria. Cumpri essa missão e estou com a
consciência tranquila de que deixei o colégio um pouco melhor do que recebi.
Passei quatro anos como diretor geral e uns três anos como diretor de pastoral.
Quando terminei minha direção, sugeri à congregação que colocasse uma leiga
aqui. A professora Albanisa Gomes foi essa leiga escolhida, a primeira mulher a
dirigir o Colégio Santo Inácio. Vou ficar aqui somente nas celebrações aos
domingos e na Noite da Misericórdia. Meu foco agora é o Mosteiro dos Jesuítas e
intensificar o Polo Santo Inácio, que terá uma sede própria, ao lado do
colégio, para mostrar essa educação universitária católica aqui em parceria com
a Universidade Católica de Pernambuco e com a Universidade Católica de Quixadá.
O POVO –
O senhor continua presidindo as missas no domingo à noite e às segundas-feiras.
O que atrai tanta gente?
Padre
Eugênio – O desejo de Deus, a
fome de Deus, o desejo de encontrar um espaço em que as pessoas se encontrem
consigo em silêncio para se encontrarem com Deus.
O POVO –
O senhor admite que o nome do padre Eugênio atrai muita gente também?
Padre
Eugênio – Eu não gostaria de
centralizar no meu nome. Eu sou apenas um instrumento que favorece o despertar
de Deus no coração das pessoas, porque o centro de tudo isso é Ele. Eu sou
apenas aquele que indica o caminho. Mas a verdade, a vida, o alimento é sempre
Ele. A gente aqui faz o acolhimento das pessoas no sentido de favorecer, no
momento existencial em que elas estão, que elas sintam a força de Deus nelas.
Há uma poetisa chilena que diz que, nos nossos momentos de dificuldade, há o
despertar de uma energia tão grande que nos favorece vencer todas as nossas
dificuldades. É isso. Dentro de cada um de nós existe essa força de Deus. Às
vezes está obscurecida por tantas preocupações e inquietações. Quando a gente
leva as pessoas a descobrirem isso, elas descobrem que “já não sou eu que vivo,
é Cristo que vive em mim”.
O POVO –
O senhor ouve muitas histórias e problemas dos outros. Como o senhor se cuida
espiritualmente para lidar com tantas questões?
Padre
Eugênio – Eu tenho também meus
momentos de fragilidades, de angústia. Eu tive momentos de depressão. Nesses
encontros, eu sempre descubro a força da oração, a força de ter pessoas ao seu
lado que animam em você a esperança e fazem olhar para além. Diante dessa
realidade que é esta pandemia, eu também sofri muito com aqueles que estavam
sofrendo, rezei com aqueles que estavam rezando e, nesse tempo, eu sempre tomei
consciência de uma coisa — como a fé é importante. A fé é uma luz que Deus
acende em nossos corações para iluminar as nossas escuridões.
O POVO –
O padre precisa estar fortalecido. O senhor reconhece sua fragilidade no meio
disso tudo.
Padre
Eugênio – O pessoal pensa que
o padre é um extraterrestre. E não tem emoção, não tem sentimentos. Eu sou
igual a vocês em tudo, até no pecado. O padre precisa desses cuidados, com a
saúde, com a mente, com o coração, com a capacidade de sonhar, de despertar.
O POVO –
Como a pandemia tem mexido com o senhor?
Essa
pandemia nos deixou órfãos de pessoas que nós amamos, de empregos, de sonhos,
de esperança. Foi um tempo em que entrei na consciência da minha missão como
padre. Eu não poderia ficar sozinho naquele quarto sem levar um pouco de
esperança, de sonhos e de Deus para as pessoas.
O POVO –
O senhor continuou com as celebrações, mesmo virtuais.
Padre
Eugênio – Nós não paramos.
Todos os domingos nós transmitíamos, pelo Instagram, as celebrações. Tive
oportunidade de escrever um livro em que eu retratei os momentos mais fortes e
mais cruéis dessa realidade que nós passamos. Como o papa Francisco sempre
pede: uma Igreja a caminho, em saída. Nós fechamos as igrejas-pedras e abrimos
tantas igrejas-famílias. Muita gente descobriu o ser igreja, ser família dentro
desse contexto de pandemia.
O POVO –
A pandemia aproximou as pessoas de Deus ou aumentou a descrença no espiritual?
Passou-se a se questionar a existência de Deus ou houve um fortalecimento da
fé?
Padre
Eugênio – A pandemia
aprofundou a nossa fé. Eu não acredito num Deus que manda sofrimento, que manda
pandemia. Deus é amor. E quando a gente ama, a gente nunca quer o mal e nunca
favorece o mal para as pessoas. Mas Deus tira dessa realidade, que não depende
de nós e não depende dele, situações de crescimento para a gente. Pessoas se
revoltaram contra Deus, outras descobriram que sem Deus é difícil vencer e
ficar de pé nesse contexto. Nós percebemos isso aqui na Noite da Misericórdia.
Houve um aumento significante de pessoas que não tinham vivência religiosa, mas
sentiram necessidade de despertar nelas a força de Deus. A pandemia mostrou a
fragilidade que todos temos e como a vida é breve e tem que ser vivida com
intensidade e leveza.
O POVO –
O senhor se vacinou contra a Covid até a terceira dose?
Padre
Eugênio – Sim e acredito na
vacina. Acredito que, se tivéssemos sido vacinados antes, teríamos enfrentado
uma realidade não tão frustrante como nós enfrentamos até agora.
O POVO –
O senhor concorda que houve uma politização da vacina e dos cuidados sanitários
até por influência religiosa?
Padre
Eugênio – Concordo, concordo.
O POVO –
E qual é o seu posicionamento sobre isso?
Padre
Eugênio – Meu posicionamento é
que nós temos que escutar a ciência. A ciência é um dom de Deus, é uma
iluminação de Deus. Negar a ciência é negar esse dom precioso que Deus dá ao
homem da capacidade de cuidar, de preservar e de dar vida à vida de tantas pessoas.
O POVO –
O senhor tem sido procurado por políticos nestes tempos? Como o senhor se
coloca?
Padre
Eugênio – Eu
sou procurado, mas eu tenho muito claro o meu papel de padre. Dom Luciano
Mendes (religioso jesuíta, 1930–2006) dizia que a Igreja não defende partidos,
a Igreja defende valores. Nós temos que defender valores de pessoas que se
colocam no cargo não para se beneficiar, mas se colocam a serviço de uma
comunidade. Isso é ser político. Há muitos políticos que não procuram o bem
comum, procuram o bem próprio. A nossa missão como Igreja é conscientizar as
pessoas para que escolham bem, porque voto não tem preço. Voto tem
consequências. Santo Inácio diz que, se a gente tem discernimento, vai sempre
escolher o bem. Somos o que nós decidimos. A Igreja tem que ajudar as pessoas a
terem discernimento — não só com relação à vida profissional e pessoal,
mas também às suas escolhas políticas.
O POVO –
A agenda de 2022 do padre Eugenio está fechada para batizados e casamentos. O
que atrai as pessoas para ter o senhor como celebrante?
Padre
Eugênio – Quando eu cheguei
a Fortaleza, 13 anos atrás, eu tive muito contato com jovens casais. E
senti um certo desejo de trabalhar com eles. Há sete anos fundamos o
Movimento Amare, que acompanha jovens com até sete anos de casados. Como
era convidado para assistir muitos casamentos, as pessoas pediam para
acompanhar os votos. Escolhi um casal muito querido e começou a criar esse
movimento. Hoje temos 980 casais. Nesse tempo de pandemia, esse Movimento fez
tão bem a eles, pois foi um desafio muito grande para os casados. Eles nunca
tiveram tanto tempo para estar um lado do outro, com suas alegrias e tristezas,
com suas luzes e sombras. E é no contato que a gente se revela — luzes e
sombras. Tivemos que dar um apoio espiritual muito grande, fizemos retiros e
reuniões virtuais para que eles estivessem de pé. Deus é tão generoso que hoje
temos mais gente querendo entrar do que os que já estão. Uma fila enorme. Mais
de 2 mil casais querem entrar.
O POVO –
Como o senhor dá conta?
Padre
Eugênio – Eu trabalho em
equipe. A gente delega. A riqueza da Igreja é essa. Todo padre que abre espaço
à participação dos leigos na missão triplica sua atividade apostólica. O
problema é que certos padres se acham donos da Igreja. O dono da Igreja é Deus.
Somos apenas colaboradores da missão de Deus. Quando se abre espaço para
participação dos leigos que querem ajudar, a Igreja acolhe com mais dignidade.
Esse Movimento é feito por casais e para casais. São mais de 300 casais
envolvidos nesse acompanhamento. Nosso lema é “Amar e servir”. Sempre digo: não
adianta vocês se abastecerem de Deus e ficarem empanzinados de Deus. A gente se
abastece de Deus para ser instrumento dele para os outros. Uma fé que não leva
ao serviço não se fortalece e desanima com facilidade.
O POVO –
Quais são os critérios para ingressar no Amare? É um grupo para casais ricos?
Padre
Eugênio – Coitado do Amare tem essa fama... O Amare recebe todo
mundo, temos casais de todas as faixas sociais, acolhidos com a mesma
dignidade. Você preenche a ficha na internet. Quando vai abrir um grupo,
convida esses casais para uma reunião e apresenta o Movimento. Nada é imposto,
tudo é proposto.
O POVO –
E qual é a dimensão social do Amare?
Padre
Eugênio – Cada grupo do Amare
tem, todo mês, que desenvolver uma atividade social. Seja no acompanhamento de
uma creche, asilo, de uma ação social que a gente faz uma vez por semestre...
Levamos alimentos, cestas básicas, atendimentos médico, odontológico e jurídico
em Canindé, em Ibiapina e agora
em Baturité. Atendemos mais de 700
famílias do bairro mais pobre de Baturité. Fomos fazer no bairro, mas os
traficantes não permitiram. Então, levamos para o Mosteiro. Foi um dia muito
especial. Visitei alguns moradores e soube que o pessoal que morava lá nunca
tinha ido para o Mosteiro. Conseguimos transporte e, em um dia, o Mosteiro se
abriu só para receber essas famílias. Se você visse a alegria desses jovens
casais se colocando a serviço... Fizemos um dia que ficará na história do
Mosteiro. É isso que eu queria: que o Mosteiro fosse essa casa aberta à
dignidade de modo especial daquelas pessoas que mais precisam, que estão
pertinho da gente.
O POVO –
Como é o seu trabalho com casais em segunda união?
Padre Eugênio – Eu vou lhe confessar uma coisa. Nós fomos a primeira
paróquia, quando eu fui pároco do Cristo Rei, a abrir um grupo para casais em
segunda união. Naquela época não era fácil, os desafios maiores eram com as
outras pastorais. A rejeição acontecia dentro da própria Igreja, pelos grupos
que estavam lá. Hoje nós temos grupo de casais no Cristo Rei e também trouxemos
essa experiência para cá (Santo Inácio). São mais de 80 casais participando.
Esse pessoal se sente muito marginalizado. O papa Francisco dá acolhimento a
esses casais, são igreja, têm direito de estar na igreja. A igreja não pode
fechar porta. O coração de Deus nunca fecha porta para ninguém, é sempre
escancarado. Pai que ama nunca fecha porta para filho nenhum. O filho mais
frágil é o que precisa de mais amor e mais proximidade.
O POVO –
Esses movimentos são uma forma de manter os fiéis na Igreja Católica e de
atrair mais fiéis?
Padre Eugênio
– Eu acredito no diálogo
inter-religioso. Eu não acredito numa religião que é muro, mas que é ponte. Se
essas pessoas passaram para outro espaço, é porque muitas vezes não receberam
acolhimento na própria igreja. É a gente que tem que se questionar: por que as
pessoas foram tão mal acolhidas? As pessoas procuram na Igreja acolhimento,
compaixão, misericórdia. E, às vezes, nossas igrejas não são compassivas nem
misericordiosas nem casas de acolhimento.
O POVO –
Como o senhor avalia as atividades dos padres hoje em dia?
Padre
Eugênio – O papa Francisco
está lutando pedindo que os padres se desburocratizem. O serviço sacerdotal se
tornou uma burocracia, em que a gente está mais no administrativo do que no
pastoral. O padre não tem mais tempo de receber. Antigamente os confessionários
eram lotados de padres. Os consultórios psicológicos substituíram os
confessionários, porque o padre não tem mais tempo. A gente foi se
burocratizando e ficando mais no administrativo do que na cura da alma. É o
sonho do papa Francisco essa luta contra a igreja clerical, que centraliza tudo
na pessoa do papa, do bispo e dos padres, e se impede a colaboração, o viver
batismal de todo aquele que é batizado e que é instrumento de Deus para o
mundo. Falta essa proximidade com o povo de Deus que vem ao nosso encontro. O pessoal
divinizou muito a imagem do padre e, às vezes, o padre é criticado por ser uma
pessoa mais próxima. Diviniza demais e, quando um padre manifesta sua
humanidade, o pessoal se escandaliza.
O POVO –
Quem é o padre Eugênio sem a batina, o Eugênio Pacelli que não o padre?
Padre
Eugênio – Padre Eugênio é uma
pessoa feliz com a vida que leva, realizado, pleno. É uma pessoa que tem seus
momentos de alegria, mas também de inquietação e de dúvidas, uma pessoa que
quer estar de bem com a vida e quer botar todas as potencialidades que
reconhece nele a serviço dessa missão que o Senhor lhe confiou.
O POVO –
Mas essa serenidade é constante?
Padre
Eugênio – Não (risos). Quem me
vê sorrindo não descobre as dores e os sofrimentos que eu trago.
O POVO –
Quando o senhor despertou para o sacerdócio?
Padre Eugênio – Com 12 anos, eu já desejava ser padre. Eu congregava
os meninos no Interior, na praça de Ibiapina. Mês de maio sempre me encantava,
porque eu sou muito devoto de Nossa Senhora. Aí, juntava os amigos e a gente levava
Nossa Senhora toda noite para casa. Eu tinha vigilância nessa imagem porque foi
minha tia freira que me deu. Vim estudar nesse colégio (Santo Inácio) com 12
anos de idade, terminei o Ensino Médio aqui. Depois, vim morar no Seminário
Menor. Quis prosseguir. Até hoje foi a decisão mais certa que tomei na vida.
Sou feliz como padre.
O POVO –
O senhor passou por algum questionamento?
Padre
Eugênio – Passei por tudo. Uma
vida em que não se tem dúvida não amadurece. Eu sempre peço a Deus que eu não
tenha certeza de tudo, porque a gente corre perigo de se acomodar. Uma fé de
que não se duvida é uma fé que não cresce, não amadurece. Eu nunca tive 100% de
certeza de que Deus me convidava para a vida religiosa, mas na certeza da fé eu
me joguei. As consolações que Deus me dá e as perseguições que sofro me ajudam
ainda mais a ter certeza de que essa vocação é um chamado. Deus me convida
todos os dias. A vocação não foi. Ela continua sendo. Todos os dias, assim como
o matrimônio, é uma decisão que você toma de renovar. Aquilo que não se renova
morre. Renovo o amor a Deus, a vocação e o serviço aos outros.
O POVO –
O senhor já administrou a Paróquia Cristo Rei, o Colégio Nóbrega no Recife, o
Colégio Santo Inácio...
Padre
Eugênio – Mas eu não fui feito
para administrar. Eu fui feito para ser pastor. A congregação sempre me confiou
cargos de administração, mas digo com toda a sinceridade: eu me realizo como
padre na dimensão do contato, na dimensão celebrativa, de ser pastor. Eu não
entrei na Companhia de Jesus para ser administrador. Entrei para ser pastor. As
funções de administração eu desempenhei bem, com responsabilidade, mas no fundo
gostava era do contato com os alunos, com as famílias, na dimensão celebrativa.
O POVO –
Perdemos muita gente nesta pandemia. A dimensão da morte mudou nestes dois
últimos anos?
Padre
Eugênio – Quando a gente
começa a expulsar o contexto da morte da vida cotidiana, a gente não valoriza a
vida. A gente privatizou muito a morte, tirou a morte do contexto de nossas
famílias, como algo que vai nos separar plenamente. As pessoas morriam bem, até
sorrindo, em seu leito. Hoje morrem na frieza de uma UTI, solitárias, sem
contato com a família. E a gente não pode banalizar a morte. Essa pandemia fez
a gente tomar consciência de que a gente é frágil, uma luz acesa que a qualquer
momento pode apagar. Viver é morrer aos poucos. Os primeiros cristãos usavam
“adormecer”, e não morrer. Adormece para o mundo e acorda em Deus. “Cemitério”
é uma palavra latina que significa um grande dormitório. Ibiapina, minha
cidade, tem a porta do cemitério mais sábio do mundo: “Hoje sou eu, amanhã
serás tu”. Que consolação! (risos) Por que a morte nos amedronta? Porque fomos
feitos para viver.
O POVO –
O senhor cita muitas pessoas nas suas homilias. Quem são suas referências?
Padre
Eugênio – Eu gosto muito de
ler Santo Agostinho, Leandro Karnal... O poeta Fernando Pessoa foi o meu melhor
psicanalista, um homem que descortina a alma da gente. Cecília Meireles também.
Cora Coralina desperta em mim o meu Interior, a minha vivência de cidade
pequena. Eu me encontro nos poemas de Cora Coralina de forma esplêndida.
O POVO –
O senhor conviveu com Santa Dulce no noviciado em Salvador. Quais lembranças o
senhor tem dela?
Padre Eugênio – Irmã Dulce tinha uma vida doada. Quando fiz essa
experiência, os hospitais de Salvador, particulares e públicos, estavam em
greve. Mandavam todos os enfermos para a porta lá do hospital e ela dizia: “Não
volta ninguém”. E mandava colocar colchão para acolher todo mundo. Era uma
mulher de corpo frágil, mas de alma forte. Você via Deus agindo naquela mulher.
Ela dormia com um balão de oxigênio do lado, porque tinha problema de pulmão.
Dormia três horas por noite em uma cadeira. Era de uma disponibilidade, de uma
sabedoria, de amor... Tímida, ela não olhava para você, fruto da formação que
ela teve. Era uma santa alegre. Tocava acordeom. Irmã Dulce quebrou paradigmas
na igreja, na própria congregação. O santo é um ousado. Na sua fragilidade, se
joga sem medo no coração do pai.
O POVO –
Qual é o lema da sua ordenação?
Padre
Eugênio – “Eu te conheço, eu
te amo e eu te envio.” É o amor de Deus incondicional que me mantém de pé. Eu
tenho dever de falar de Deus misericordioso, porque eu o experimento na minha
vida. Que Deus me anime sempre e não me deixe jamais abrir espaço para o
desânimo, que me faça ousar e acreditar para ver o milagre acontecer. Deus é
muito bom. Deus é dez! (risos)
Fonte: O Povo, de 21/03/2022.
Opinião. p.4 e 5.