Por Lara Vieira, texto Fabio Lima, foto (*)
Aposentado
da Uece em outubro do ano passado, o ex-reitor fala do legado como professor, da
experiência na criação do SUS e dos 20 dias passou intubado em tratamento contra
a Covid-19
Para José Jackson Coelho Sampaio, ensinar nunca
foi apenas um ofício, mas um ato de construção coletiva. Aposentado desde outubro
de 2024, ele dedicou 31 anos à Universidade Estadual do Ceará (Uece), que neste
mês de março completa 50 anos de existência, onde deixou um legado inegável.
Psiquiatra, também ajudou a moldar a história do Brasil ao participar
da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, cujo relatório final serviu de base
para o capítulo sobre Saúde na Constituição de 1988 e contribuiu diretamente para
a criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Além do médico e professor (cujas contribuições estão em uma centena
de textos científico, artigos, capítulos de livros e livros), vive o poeta, que
transborda pensamentos em mais de 200 crônicas; destas, mais de 100 publicadas no
O POVO. Há ainda mais de 50 contos e em torno de 500 poemas.
O POVO - O senhor já chegou a mencionar a forte influência de seus pais
na construção de seus valores. Quais foram as maiores lições?
Jackson Sampaio - Meus pais valorizavam muito a cultura. Meu pai, ex-seminarista, falava
latim e francês e estimulava meu aprendizado. Desde criança, ele me fazia ouvir
a rádio BBC de Londres para que eu aprendesse inglês. Esse incentivo intelectual
foi um dos maiores legados que me deixaram.
Por exemplo, em Coroatá (MA), o tabelião da cidade, amigo da família,
era sobrinho do escritor maranhense Aluísio de Azevedo, considerado o pai do naturalismo
brasileiro. Ele possuía, em sua biblioteca, manuscritos do tio, mas meu pai não
queria que eu os lesse, por considerá-los moralmente pesados.
Quando questionei essa proibição, ele propôs um acordo: ele leria primeiro
e responderia minhas dúvidas depois. Isso me ensinou desde cedo sobre autonomia
crítica e liberdade com responsabilidade, mostrando que não existe liberdade absoluta,
pois toda liberdade é regulada pela interdependência humana. Minha "perversão"
infantil, como diria Freud, era não fazer perguntas ao meu pai.
O POVO - O senhor é sobralense e morou em algumas cidades antes de vir
para Fortaleza, não é?
Jackson Sampaio - Quando meu pai assumiu a gerência de uma unidade das Casas Pernambucanas,
foi transferido para Sobral, onde nasci. Depois moramos em Russas, voltamos para
Crateús e fomos para Coroatá (MA), onde ele ficou por 12 anos. Fiz o ensino primário
em Coroatá (MA) e o quarto ano do ginásio em São Luís. Como lá não havia escola
além do segundo ano ginasial, vim sozinho para Fortaleza, aos 13 anos. Coincidentemente,
cheguei em 15 de março, pouco antes do golpe militar de 31 de março.
Morei na casa de um tio ligado ao Partido Comunista, que acabou preso.
Eu era apenas um garoto e vivi tudo de perto. Naquele ano, Fortaleza teve um dos
invernos mais rigorosos do Ceará. Lembro de atravessar o quintal alagado, com água
no joelho, para esconder livros políticos em sacos plásticos. Escondi-os em uma
venda de bananas atrás da casa dos meus avós. Então a revolução não foi só no País,
mas dentro de mim também.
O POVO - Como isso influenciou sua atuação no campo político e social?
Jackson Sampaio - Nunca fui filiado a partidos, mas sempre defendi a democracia. Norberto
Bobbio (filósofo) diz que a definição de esquerda e direita depende da visão sobre
a desigualdade. Se você a vê como algo natural, se alinha à direita. Se a entende
como um fenômeno histórico, fruto de disputas econômicas e sociais, está à esquerda.
No Brasil, 10% da população detêm 90% da renda, enquanto os outros 90% dividem apenas
10%. Se você acredita que essa desigualdade pode ser transformada por lutas sociais
e econômicas, se posiciona à esquerda. Se a naturaliza, está à direita. Eu me posiciono
no campo da esquerda democrática.
O POVO - O que atraiu o senhor a seguir na Medicina?
Jackson Sampaio - Brinco que escolhi Medicina por exclusão. Na época, as opções mais
comuns para a classe média eram Medicina, Direito e Engenharia. Nunca me interessei
por Matemática, então descartei Engenharia.
Direito também não me atraía. O advogado precisa defender seu cliente,
mesmo sabendo que ele é culpado, porque a defesa é um direito fundamental. A necessidade
de inventar argumentos me incomodava.
Então, acabei optando pela Medicina. Descobri A. J. Cronin, um autor
inglês que escrevia sobre médicos atendendo os pobres no interior da Inglaterra
pós-Revolução Industrial. Achei aquilo fascinante, mais uma idealização do que um
desejo concreto.
O POVO - E quando decidiu seguir com a psiquiatria?
Jackson Sampaio - No terceiro ano da faculdade, organizamos uma frente democrática
para lutar contra a ditadura militar. Fomos informados de que estavam levando presos
políticos para o Manicômio Judiciário do Ceará. Na mesma época, surgiu um concurso
para técnico de práticas médicas, vinculado à secretaria estadual, para atuar no
manicômio.
Como estudantes de Medicina, nos candidatamos para identificar presos
políticos entre os internados, e eu acabei sendo um deles. Lá, encontrei pessoas
com transtornos psiquiátricos que haviam cometido crimes e cumpriam pena, mas o
mais chocante era que, na prática, o local funcionava como prisão perpétua. Muitos
ficavam internados por décadas, além do tempo que cumpririam em um presídio comum.
Naquela época, o sistema era extremamente cruel. Hoje ainda há muitos
problemas, mas existem mais mecanismos de fiscalização. A estrutura era precária.
Se uma chave quebrasse, não havia reposição, e tínhamos que dormir com a porta aberta.
Alguns internos passavam a noite acordados, mesmo sob fortes medicações. No início,
senti medo, mas pensei: "Não posso temer meu próprio paciente". Então, decidi ficar
acordado com eles.
Foi assim que conheci um interno apaixonado por música, ex-locutor de
rádio que cantava em francês. Passamos a cantar juntos músicas como La Vie en
Rose e Sous le Ciel de Paris, de Edith Piaf.
Os técnicos de enfermagem achavam que eu era tão louco quanto os pacientes.
Mas sempre gostei dessas experiências transgressoras. Para mim, a relação com o
paciente nunca poderia ser apenas técnica, precisava ser humana. Só assim era possível
entender e, de fato, ajudar no tratamento. Essa foi uma lição que marcou toda a
minha trajetória.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 24/03/25. Páginas Azuis. p.4-5.