Prometer vacina para
Covid em 2020 é grave desserviço ao público, avalia Presidente da Merck
"Se você vai usar
uma vacina em bilhões de pessoas, é melhor você saber o que essa vacina faz", alerta Ken
Frazier.
Ken Frazier, Presidente e CEO da
principal produtora de vacinas do mundo, a gigante farmacêutica Merck &
Co., em entrevista à Professora Tsedal Neeley, da Harvard Business School,
lembrou que a vacina mais rápida já trazida ao mercado foi o medicamento da
Merck contra a caxumba. Levou cerca de quatro anos.
A vacina da Merck para o Ebola
levou cinco anos e meio e só neste mês foi aprovada na Europa.
A vacina para tuberculose levou
13 anos, rotavírus 15 anos e catapora 28 anos.
Frazier explicou que o processo
de desenvolver uma vacina é demorado porque requer uma rigorosa avaliação
científica. No caso da Covid, "nem sequer entendemos o vírus em si ou como o vírus
afeta o sistema imunológico".
Frazier disse que as diferentes
abordagens, de cerca de 160 programas de desenvolvimento no mundo, visam criar
uma vacina que possa ser segura, eficaz e durável, porém ressaltou que são três
questões diferentes.
"Ninguém sabe ao certo se algum
desses programas de vacinas produzirá ou não uma vacina como essa. O que mais
me preocupa é que o público está com tanta ansiedade, tão desesperado para
voltar à normalidade, que está nos empurrando [a indústria farmacêutica] para
mover as coisas cada vez mais rápido", alertou.
"Há muitos exemplos de vacinas
no passado que estimularam o sistema imunológico mas não conferiram proteção.
E, infelizmente, há alguns casos em que não só não conferiu proteção mas ajudou
o vírus a invadir a célula porque a vacina estava incompleta em termos de suas
propriedades imunogênicas. Temos que ter muito cuidado", disse Frazier.
Em última análise, "se você vai usar uma vacina em
bilhões de pessoas, é melhor você saber o que essa vacina faz".
"Quando as pessoas dizem ao
público que vai haver uma vacina até o final de 2020, por exemplo, eu acho que
fazem um grave desserviço ao público. No final do dia, não queremos apressar a
vacina antes de termos uma ciência rigorosa. Vimos no passado, por exemplo, com
a gripe suína, que essa vacina fez mais mal do que bem. Não temos um grande
histórico de introduzir vacinas rapidamente no meio de uma pandemia. Precisamos
ter isso em mente",
ponderou o CEO.
No último quarto do século
passado, foram desenvolvidas apenas 7 novas vacinas, 4 delas pela Merck, contra
patógenos para os quais não havia anteriormente nenhuma vacina.
Para Frazier, o anúncio que uma
vacina está chegando leva políticos e população a reduzirem os cuidados com o
vírus.
"É fundamental que as pessoas
entendam que, enquanto esperamos pela vacina, a proteção imediata contra a
propagação desse vírus é boa higiene, máscaras, distanciamento social, etc.", disse Ken Frasier.
Fabricação e distribuição
No entendimento do CEO da Merck,
a fabricação e distribuição da vacina "é um desafio maior do que o desafio
científico de chegar a uma vacina segura e eficaz".
"Eu diria que há dois grandes
problemas no que diz respeito à distribuição global. Em primeiro lugar, estamos
vivendo em um tempo de ultranacionalismo onde os países querem pegar o que está
disponível e dizer: 'Vou usá-lo primeiro na minha própria população', em vez de
usá-lo primeiro nas populações globais que estão em maior risco", disse Frasier.
O segundo problema é a produção
em escala.
"Há sete bilhões e meio de
pessoas no planeta agora. E nunca tivemos uma vacina que tenha sido usada em
população desse tamanho",
afirmou o executivo.
Frasier explicou que será preciso
resolver não apenas o problema de fabricar em escala que atenda esse número de
pessoas, mas também descobrir formas de distribuir o medicamento,
particularmente nas áreas do mundo onde as pessoas não podem pagar a vacina e
também onde o desafio de chegar ao necessitado é maior.
As empresas farmacêuticas têm se
comprometido com acesso amplo, equitativo e acessível, mas a concretização é de
difícil execução. Por exemplo, as indústrias não têm capacidade de produzir
frascos suficientes para acomodar as doses.
A Índia, maior produtora mundial
de frascos, e fabricantes americanos, como a Corning, podem aumentar sua
produção, mas, como outros, foram surpreendidos pela propagação da pandemia. Um
material particular usado na fabricação dos frascos de vacinas, chamado
borosilicate tubing, está esgotado nos fornecedores.
A escassez de frascos poderá
interferir não apenas com a disponibilidade de uma vacina contra o coronavírus,
mas de outros medicamentos, incluindo aqueles administrados em hospitais.
Alguns fabricantes de vacinas já
estão se preparando para essa crise potencial.
"Normalmente, estamos
produzindo vacinas em frascos de dose única", disse Albert Bourla, CEO da Pfizer. "Também estamos explorando com
os governos agora se seria mais conveniente se houver frascos de 5 ou 10 doses".
"Se for uma apresentação
aceitável e prática dada a pandemia, acho que podemos resolver uma parte
significativa do gargalo da manufatura", acrescentou.
Para Paul Stoffels, diretor
científico da Johnson & Johnson, não existe capacidade para produzir
frascos em bilhões. "Cinco ou 10 vacinas por frasco provavelmente será essencial para podermos
lidar com o volume",
disse Stoffels.
Rick Bright, ex-diretor da
Agência de Pesquisa e Desenvolvimento Biomédico dos Estados Unidos, disse que
poderá levar dois anos para a indústria produzir frascos suficientes apenas
para as necessidades americanas de vacinas.
Produzir e distribuir centenas de
milhões de frascos de vacinas também exigirá grandes quantidades de rolhas
especiais de borracha ou latex — fabricadas por duas empresas que dominam o
mercado global — bem como agulhas e unidades de refrigeração. Estoques baixos
de qualquer um desses componentes poderão retardar os esforços de vacinação.
A pressão pela fabricação de
vacinas e suprimentos relacionados poderá eclipsar a disputa por máscaras,
ventiladores pulmonares e testes.
Realidade
"Precisamos de políticos que
tenham a vontade e a integridade para contar a verdade às pessoas. A realidade
do mundo é dada, o que eu disse sobre o desenvolvimento de vacinas, a realidade
do mundo é que nesta época do próximo ano muito bem pode parecer com o que
estamos experimentando agora", disse o CEO da Merck.
"E quando você pensar em mandar
as crianças de volta para a escola, nós vamos ter que encontrar uma maneira de
fazer isso com segurança porque os pais estão presos se os filhos estão em
casa. E nas cidades do interior, por exemplo, muitos pais dependem das escolas
para alimentar seus filhos: café da manhã, almoço e, muitas vezes, lanche após
a escola. Então temos que achar um jeito de abrir a creche. Você tem que
encontrar uma maneira de abrir as escolas, sem mencionar o fato de que o
aprendizado remoto não funciona para todas as crianças", ponderou Frasier. "Se você está olhando para a
nossa população, há um monte de pessoas que não têm acesso à banda larga muito
menos o tipo de dispositivos que eles precisam. Então essa ideia de que podemos
conduzir a educação remotamente, vai funcionar para algumas crianças, as
crianças mais favorecidas, mas vai levar populações desfavorecidas a movê-las
mais para trás do que já estão".
Warp Speed
O governo americano montou uma
iniciativa sob o nome de "Warp Speed" para
acelerar o desenvolvimento de vacinas. Liderado pelo diretor da unidade de
vacinas da FDA, Peter Marks, o projeto, no entanto, poderá enfrentar
obstáculos.
Acelerar o cronograma da vacina
significa tomar atalhos. Alguns, como deixar os fabricantes de vacinas
abandonarem certos estudos em animais, ou fazê-los em paralelo com os primeiros
testes em humanos, já estão em andamento.
O governo também poderá emitir
uma autorização de uso emergencial para uma vacina promissora antes de
completar todas as etapas típicas de revisão, assim como tem sido feito para
alguns testes de coronavírus e medicamentos.
O desafio do Warp Speed é obter
300 milhões de doses de vacinas seguras e eficazes entregues até janeiro de
2021.
O prazo de meses em vez de anos
traz muitos problemas. A estratégia de focar apenas nos métodos mais rápidos
pode, no final, não render vacinas experimentais bem-sucedidas. Com o
financiamento concentrado em desenvolvimento rápido, as soluções que requerem
um tempo maior não foram consideradas.
No entanto, o Dr. Gregory Poland,
um dos principais cientistas da Clínica Mayo, adverte que os EUA estão em uma
corrida "lebre e tartaruga", que não acaba até que uma vacina seja
comprovadamente segura, eficaz e escalável.
O projeto americano selecionou um
portfólio de oito vacinas: quatro delas são vetor viral (desenvolvidas por
Johnson & Johnson, AstraZeneca, Merck e Vaxart), três são genéticas (sendo
desenvolvidas pela Pfizer e BioNTech, que recusaram financiamento federal;
Moderna; e Inovio), e uma é à base de proteínas (desenvolvida pela Novavax).
Por que não há suporte para
vacinas com vírus inteiros inativados? A resposta é que elas seriam
"antiéticas" nos termos do projeto.
Vacinas compostas por vírus
inteiros usam uma tecnologia madura que tem sido licenciada para uso comercial
por mais de 70 anos. Uma vez verificadas como seguras e eficazes, elas podem ser
produzidas com instalações existentes em todo o mundo e administradas com
obstáculos técnicos mínimos.
A dificuldade é que o
desenvolvimento de vacinas com vírus inteiros pode levar muitos anos porque os
cientistas precisam encontrar uma quantidade ideal de vírus que proteja os
indivíduos sem fazê-los adoecer.
Como a proposta do Warp Speed é
ter uma solução eficaz e segura até janeiro de 2021, a tecnologia foi excluída
porque o tempo recorde para desenvolver uma vacina com vírus inteiros
inativados é de 4 anos.
Com um prazo pré-especificado,
fica claro por que sete das oito vacinas financiadas pelos EUA são vetoriais
virais e candidatos genéticos.
Esses dois tipos estão em rápida
movimentação no processo de desenvolvimento e, se comprovados bem-sucedidos nos
ensaios clínicos da Fase III, têm alguma chance de cumprir o prazo de janeiro
de 2021. No entanto, nenhuma vacina genética foi aprovada para uso humano,
enquanto vacinas de vetores virais têm sido usadas em animais, mas ainda não
foram determinadas como eficazes.
Para o Dr. Babak Javid,
pesquisador principal da Tsinghua University School of Medicine, Pequim, e
consultor em doenças infecciosas dos hospitais da Universidade de Cambridge,
"as
vacinas inativadas tendem a funcionar menos bem em idosos. O que não sabemos é
se um candidato à vacina usando uma tecnologia que nunca foi implantada em uma
vacina humana licenciada, é melhor ou pior do que as vacinas inativadas a esse
respeito".
A CoronaVac, a vacina
experimental chinesa aprovada pela Anvisa para ensaios clínicos da Fase III no
Brasil, conduzidos pelo Instituto Butantan de São Paulo e envolvendo 9.000
voluntários de vários estados brasileiros, usa a tecnologia de vírus SARS-CoV-2
inteiro e inativado.
Fonte: frontliner.com.br