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Nanette Blitz Konig, em sua casa no bairro do Sumaré
(zona oeste de São Paulo). (Arquivo Pessoal N. Konig). |
Por Gabriela Fujita, do UOL, em São Paulo.
Prestes a fazer mais uma palestra, desta vez em uma
livraria paulistana, Nanette König, 86, confidencia ao marido em voz baixa:
"Acho que não vem ninguém". Era perto das 19h, em um dia de semana, e ela
estava ali a convite para contar parte (certamente a mais triste) de sua
história.
Holandesa de origem judaica, Nanette perdeu a família no
campo de concentração Bergen-Belsen, na Alemanha, onde permaneceu entre 1944 e
1945, por pouco mais de um ano.
Expor o que aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial é
um processo penoso demais para muitas vítimas da perseguição nazista, e é
comum que perdure por anos o silêncio sobre o passado. Nanette, pelo contrário,
escolheu não guardar segredo sobre as memórias horrendas daqueles meses e do
que veio em seguida.
Os relatos sobre a adolescência ela começou a fazer aos
poucos, no fim dos anos 1990, quando já era avó, e passaram a ser cada vez mais
frequentes. Primeiro para seus filhos e netos, depois em palestras para escolas
e instituições educacionais.
Em agosto de 2015, 70 anos após ser resgatada do campo de
concentração, foi lançado "Eu sobrevivi
ao Holocausto" (editora Universo dos
Livros), em que ela narra sua experiência.
"Quem sobrevive
por acaso tem um dever de relatar porque, senão, aqueles que morreram não têm
voz, não têm representação, e têm de ter",
ela defende.
Testemunha de uma das piores atrocidades na história da
humanidade, seu interesse maior é transmitir aos outros algo que, de tão
brutal, é difícil conceber. Por isso a preocupação com que as pessoas estejam
lá para ouvir o que ela tem a falar.
Surpreende a vitalidade desta mulher de olhos claros e
vibrantes, cabelos curtos e vestido florido sem mangas, que tem uma agenda
cheia e se levanta o tempo todo da cadeira enquanto dá a entrevista.
"Quase não sobra
espaço para o tempo livre", ela contou
à reportagem do UOL em sua casa, no Sumaré (zona oeste de São
Paulo). Em média, são três palestras por semana, às vezes também fora da
capital. "Vou aonde me convidarem."
Foi "por acaso" que escapou da morte, ela diz,
pois não havia como sobreviver em tais condições. Ao lado do pai, da mãe e do
irmão, chegou a Bergen-Belsen em fevereiro de 1944, dois meses antes de fazer
15 anos.
"Eu me lembro de
quando cheguei, mas não de quando saí. Quando você sofre uma subnutrição como
nós sofremos, tem hora que falham as sinapses no cérebro, não tem memória".
Seu pai morreu em novembro daquele ano, vítima de um
infarto provocado pela fome, ela acredita; o irmão e a mãe foram enviados para
outros campos no mês seguinte, e a partir disso a adolescente Nanette ficou
sozinha.
"Deportaram meu
irmão para Oranienburg [Alemanha], mas eu não sei o que aconteceu. Eu fiz
pesquisa, mas não tem dados, ele deve ter sido morto quando chegaram lá (...),
uma vez que Oranienburg pertencia a Sachsenhausen [campo de concentração], que
tinha câmeras de gás, mas não consta o que aconteceu nesse transporte", ela conta.
"Minha mãe foi
deportada para o campo de concentração em Bendorf, e lá ela trabalhou 700
metros abaixo do solo em uma fábrica de partes de avião. E ela saiu de Bendorf
de trem, em abril de 1945, com 2.000 mulheres, e esse trem não tinha destino,
provavelmente chegou à Suécia, mas minha mãe morreu cinco dias depois da
partida do trem. Também não sei o que foi feito com o corpo dela."
Em abril de 1945, as tropas inglesas assumiram o campo
onde Nanette estava, preparadas para uma batalha, mas não para o que lá
encontraram: montes de corpos, muita gente à beira da morte, sujeira, ratos,
piolhos... Foram os britânicos que deram a Bergen-Belsen o apelido de 'Campo do
Horror'.
"Tinha pilhas e
mais pilhas de esqueletos, e o cheiro era insuportável, e obviamente eu, de vez
em quando, pensava quando iria me juntar a eles, porque a situação era
desesperadora. (...) Foi uma situação horrenda, uma coisa horrorosa, tão
horrorosa que, ao contrário de Auschwitz, em Bergen-Belsen não ficou nada,
depois de três semanas queimaram o campo",
ela lembra.
Nanette supõe que ali foi organizado um contingente de
judeus para possíveis trocas de guerra que interessassem aos alemães. Por conta
disso, foi permitido que ela mantivesse o passaporte.
Esquálida, ela foi levada pelo Exército de volta à
Holanda no meio de 1945, aos 16 anos de idade.
"Em agosto de
1945, eu soube que era a única que tinha sobrevivido, que não tinha ninguém
mais. Eu quase enlouqueci. Depois eu me dei conta que a vida continua, que se
eu queria viver, eu tinha que assumir o que restou", sobre o momento em que foi confirmada a morte de
sua família.
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Na página da
direita, Nanette Konig (acima) e Anne Frank, estudantes em Amsterdã, retratadas
no livro "Eu sobrevivi ao Holocausto" (Editora Universo dos Livros)
Anne Frank, internação em sanatório e
vida nova no Brasil
Recuperar-se da crueldade de Bergen-Belsen, ao menos
fisicamente, foi um processo que durou três anos, sem medicamentos nem
acompanhamento psicológico, em um sanatório na Holanda, aonde a jovem holandesa
chegou com tuberculose, pleurite e tifo, como conta em seu livro.
"A demora de minha recuperação mostra o
quanto os tratamentos em Bergen-Belsen foram brutais, e foi preciso muito
esforço e paciência para que eu pudesse superar tudo isso. Havia não só o
sofrimento psicológico que eu deveria superar, toda a perda que eu sofri,
toda a minha juventude roubada e as cenas do campo que tanto me
traumatizaram, mas também as lembranças físicas do campo, que assolavam
meu corpo como se nunca quisessem me abandonar." (trecho do livro)
Ainda hospitalizada, Nanette teve contato com Otto Frank,
pai da jovem alemã Anne Frank, que havia sido levada a Bergen-Belsen na mesma
época. A história de Anne ficou conhecida no mundo todo com a publicação de seu
diário, após o fim da guerra. As duas foram colegas na escola em Amsterdã e se
viram algumas vezes no campo de concentração.
Só em meados de 1948 Nanette pôde estar em um lar
novamente, desta vez como hóspede de uma enfermeira cristã que conhecia sua
família. Ela e o marido se tornaram os tutores da jovem. No ano seguinte,
mudou-se para a casa de tios em Londres que haviam escapado dos nazistas. Foi
na Inglaterra que conheceu John, seu marido, com quem vive no Brasil desde o
início da década de 1950.
John, um rapaz judeu de origem húngara, tinha parentes
aqui e veio primeiro, enquanto eles namoravam. Parte de sua família já havia
imigrado nos anos 1930.
"Não foi simples para John conseguir seu
visto brasileiro, justamente porque ele era judeu –na época, o governo
brasileiro, presidido por Getúlio Vargas, tinha traços antissemitas. Um
primo de John trabalhava no Instituto Biológico de Minas Gerais, e o
governador do Estado naquele período era Juscelino Kubitschek. O primo
explicou a Juscelino a situação, que deu um cartão com suas recomendações para
que conseguissem o visto. (...) Quando apresentaram o cartão no Itamaraty,
o funcionário falou depois de alguns rodeios: 'Olha, o visto dele não saiu
ainda porque ele é judeu'. (...) Muitos judeus sofreram situações
parecidas ao imigrar para o Brasil: o presidente Getúlio Vargas tinha
posturas antissemitas e era simpatizante de Benito Mussolini, o ditador
italiano aliado dos nazistas na Segunda Guerra Mundial, além do próprio
Hitler. Nessa época, para conseguir entrar no Brasil, os judeus pagavam
alguma quantia ou eram batizados como católicos." (trecho do
livro)
Em São Paulo, Nanette construiu novos caminhos. O casal
teve três filhos e se estabeleceu em definitivo no Brasil após algum tempo
morando nos Estados Unidos e na Argentina.
"As questões [dos
filhos] não faltaram: onde é que está todo mundo? Eventualmente se deram conta
que não tinha uma segunda geração, não tinha avós, não tinha primos, não tinha
tias, tias-avós... chegou uma hora em que eles perguntaram", diz Nanette sobre revelar a sua família, por mais
assustador que fosse, o drama ao qual havia sido submetida.
Poder explicar o que aconteceu para que isso nunca mais
se repita permite a ela combater a ignorância, base ideal para a manipulação de
Hitler e de qualquer governo que queira subjugar um povo, na sua opinião.
"Minha função nas
escolas aonde vou é, depois que eles ensinam sobre a Segunda Guerra, entro eu
para falar sobre o Holocausto. (...) Quem ensina sobre o Holocausto tem de
ensinar o contexto, a organização, não adianta só dizer 'nunca mais'. Nunca
mais o quê?"
"A razão de eu
ter escrito o livro é: na hora em que eu não estiver mais, pelo menos
alguém tem um depoimento", ela diz.
E enquanto ela estiver por aqui, é assim, com esta frase,
que gosta de encerrar a conversa: "O
preço da liberdade é a eterna vigilância."
Fonte: UOL Notícias de 27/10/2015. Apic/Getty Images/ Editora Universo dos Livros
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