Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
O fazer literário tem muito a ver com a
capacidade de realizar uma geometria combinatória entre o funcionamento mental
de quem está lendo e, o que está escrito. Não é à toa que os clássicos passam
pelo tempo e permanecem jovens e atrativos, ou, que um livro, depois de
publicado, seja como um filho emancipado, que toma os mais diversos caminhos. A
própria História da humanidade está dividida entre a fase escrita e não
escrita.
A escrita literária dá forma àquilo que não
possui forma, ofertando sentido ao que é incompreensível, pondo ordem
cronológica àquilo que ignora o tempo comum, individualizando a causalidade
onde existe a casualidade, oferecendo continuidade onde há apenas contiguidade,
impondo harmonia ao caos. Dado ao fato de que, o escritor é humano, não poderá se
livrar da tentação de impor ao leitor aquilo que sua razão deseja.
Entretanto, até bem pouco tempo, os textos
jornalísticos eram considerados literatura de segunda classe, cabendo a
originalidade, na literatura, a gêneros como o romance, a novela, o conto e a
poesia. Somente considerava-se literatura quando havia a elaboração estética da
linguagem. Todavia, atualmente, apesar da ampliação do conceito de literatura
sofrida com os movimentos de vanguarda (reação a modelos literários das
gerações anteriores), no mundo acadêmico, muitos permanecem fiéis à antiga
classificação de literatura. É compreensível tal cautela, considerando a
importância da palavra escrita.
Apesar do texto escrito ser uma tentativa de
tornar perene o conhecimento, através de um código de sinais e desenhos que
deram origem ao alfabeto, a compreensão da leitura é metafísica. Embora seja
materialmente menos perecível, a palavra escrita no papel, no papiro ou em
argila, apresenta uma conotação diversa de acordo com variáveis temporais, com
a personalidade do leitor, a classe social, a religião, a cultura, a instrução,
etc. Assim, como é impossível atravessar o mesmo rio duas vezes exatamente da
mesma forma, fato idêntico ocorre com a leitura. As interpretações das
Escrituras Sagradas, por exemplo, não se prendem a questões burocráticas.
Não deixa de ser estranha a curiosidade
depositada sobre um escritor criativo, sua fonte de inspiração, de onde retira
seu material e como consegue impressionar ou despertar emoções esquecidas.
Quando não podemos explicar os acontecimentos, pomos a responsabilidade nas
mãos dos deuses ou das musas.
Permitam-me citar Sigmund Freud, em Escritores
Criativos e Devaneios, pois foi o primeiro a tentar uma explicação dessa
curiosidade:
"Nós, leigos, sempre sentimos uma intensa
curiosidade – como o Cardeal que fez uma idêntica indagação a Ariosto – em
saber de que fontes esse estranho ser, o escritor criativo, retira seu
material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e despertar-nos emoções
das quais talvez nem nos julgássemos capazes. Nosso interesse intensifica-se
ainda mais pelo fato de que, ao ser interrogado, o escritor não nos oferece uma
explicação, ou pelo menos nenhuma satisfatória; e de forma alguma ele é
enfraquecido por sabermos que nem a mais clara compreensão interna (insight) dos determinantes de sua
escolha de material e da natureza da arte de criação imaginativa em nada irá
contribuir para nos tornar escritores criativos. Se ao menos pudéssemos
descobrir em nós mesmos ou em nossos semelhantes uma atividade afim à criação
literária! Uma investigação dessa atividade nos daria a esperança de obter as
primeiras explicações do trabalho criador do escritor. E, na verdade, essa
perspectiva é possível (...). Afinal, os próprios escritores criativos gostam
de diminuir a distância entre a sua classe e o homem comum, assegurando-nos com
muita frequência de que todos, no íntimo, somos poetas, e de que só com o
último homem morrerá o último poeta (...)."
Talvez essa interpretação sirva para dois dos
fatos da curiosidade humana, em relação à vida privada dos médicos. Quando
adoecemos, passamos a depender mais dos outros, ficamos frágeis, subordinados à
figura paterna, por isso, voltam ao nosso aparelho mental fantasias do poder do
adulto sobre a criança. E como adulto, não desejamos a volta, a submissão à
autoridade paterna, representada agora pela figura do médico e dos fatos não
compreendidos que conduzem a fantasias infantis.
Voltando aos escritores... falemos um pouco
daqueles não criativos. Os que se valem de temas preexistentes, parecem,
realmente, diversos daqueles que criam o seu próprio material. Eles são, sem
dúvida, muito mais aplaudidos pelos críticos, e geralmente têm maior êxito
social. Esses “escritores descritivos” têm, de certa maneira, certa criatividade
pelo modo de contar o seu enredo, escolhem o que contar e comentar. É verdade que
muitos dos seus comentários, mostram coisas e fatos não avistados por vários
leitores.
Entretanto, de uma maneira geral, a história
imaginada possui o herói ou heroína, centro do interesse, para quem o autor
procura, de todas as maneiras possíveis, orientar a simpatia do leitor. O
sentimento de segurança com que acompanhamos o/a protagonista, através de suas
perigosas aventuras, é o mesmo com que o herói ou heroína, na vida real,
atira-se à água para salvar um homem que se afoga. Ao astro "Nada pode
acontecer", pois a novela não pode acabar. O fato da heroína se
apaixonar, invariavelmente, pelo herói, não pode ser encarado como um retrato
da realidade, mas será de fácil compreensão, se encararmos como um componente
necessário ao devaneio. Os demais personagens da história dividem-se em: bons e
maus. Os bons são aliados do personagem que se tornou o herói da história, e os
maus são seus inimigos.
Sabemos que muitas obras imaginativas não
guardam boa distância do modelo do devaneio ingênuo da criança. Não posso
deixar de suspeitar, que acontecimentos mais afastados estejam entrelaçados a
fantasias ou mitos do inconsciente. Em muitos romances, é como se o autor se
colocasse dentro da persona do mocinho e observasse as outras personagens. Diz
Freud, em O Escritor Inventivo, que “o romance dito psicológico, sem dúvida, deve
sua singularidade à inclinação do escritor moderno de dividir seu ego, pela
auto-observação, em muitos egos parciais, e em consequência personificar as
correntes conflitantes de sua própria vida mental por vários heróis”.
Há também o “escritor-relator”, que descreve a vida sem nela penetrar. É
apenas um espectador da vida, como muitas pessoas costumam ser. Embora seu
material não seja novo, procede do inconsciente popular, disfarçadamente
contido nos mitos, lendas e contos de fada. Quando um escritor apresenta sua
obra baseada no imaginário ancestral, o leitor sente grande prazer em reviver
um passado de glória.
Em suma, na produção
literária está mais que evidente a técnica de superar o sentimento de repulsa à
barreira do interdito. Faz literatura quem oferece a oportunidade ao leitor de
se permitir idealizações sem culpas, quimeras sem autoacusações, e o não
rebaixamento de sua condição de adulto.
(*) Professor Titular da Pediatria
da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União
Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos
(ABRAMES). Consultante
Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Foi um dos primeiros
neonatologistas brasileiros.