Ângela Gutierrez, presidente da ACL (Foto Mauri Melo) |
Alba Valdez, pseudônimo de Maria Rodrigues Peixe, foi a primeira
mulher a ingressar na Academia Cearense de Letras (ACL). Em 1922, quando ainda
se afirmava enquanto Sociedade de Homens de Letras, Alba ocupou a cadeira
número 8 da instituição. Jornalista, educadora e escritora, Alba iniciou um
trajeto ininterrupto: a inserção da mulher na vida pública literária no Estado.
Em 1930, após reestruturação da ACL, a precursora não foi convidada novamente
para compor o quadro de membros - o que, talvez utilizando-se de um eufemismo,
considerou uma descortesia. Imediatamente, redigiu um artigo intitulado De pé.
Em suas palavras, o ato atingia também a todas suas compatriotas,
"mulheres que, como eu, mourejam na seara das letras". A igualmente
fundadora da Liga Feminista Cearense voltou à entidade apenas em 1937, mas
carregou em seus passos a força retomada por outra escritora quase 100 anos
depois. Nesta quarta-feira, em cerimônia realizada na sede da agremiação a
partir das 19 horas, Angela Maria Rossas Mota de Gutiérrez toma posse como a
primeira mulher presidente da ACL.
Autora do renomado O Mundo de Flora (1990), entre demais títulos,
Angela Gutiérrez assume a vaga do então presidente Ubiratan Aguiar - regente no
binômio 2017/2018. A nomeação foi celebrada entre literatos, mas Angela lamenta
ainda ser necessário noticiar conquistas há muito reivindicadas. "Eu espero que
chegue o tempo em que não cause mais surpresa a mulher assumir um cargo
importante. Mas enquanto a mulher não tiver uma voz que tenha a mesma potência
de divulgação e de poder que homem, é bom que se destaque especificamente isso.
Nesse momento, percebo sim que quando abro uma porta - ou outra mulher abre -,
ela ficará aberta para todas nós", defende a escritora.
Ingressa na Academia Cearense de Letras há 21 anos e
vice-presidente na gestão passada, Angela dá continuidade ao trabalho iniciado
por seu bisavô, Tomás Pompeu de Sousa Brasil (1852-1929). O advogado e político
foi membro fundador e o primeiro a presidir a organização criada em agosto de
1894, pioneira do gênero no País. Licenciada em Letras, mestre em Educação pela
Universidade Federal do Ceará e pós-doutora em Letras pela Universidade Federal
de Minas Gerais, a ocupante da cadeira 18 relembra a insegurança juvenil já
abandonada. "Vários colegas meus da UFC que eram também da ACL me
perguntavam: 'Por que você não se candidata?'. 'Não, eu estou muito verde'. Até que o próprio
presidente da Academia, à época o poeta extraordinário Artur Eduardo Benevides,
me disse: 'Todos os acadêmicos querem você lá, você não quer entrar na
casa do seu bisavô?'. Essa segunda pergunta foi decisiva. Ser presidente, pra
mim, tem uma ligação muito mais afetiva, familiar, porque eu passei a vida
ouvindo falar do meu bisavô. Isso me dá uma sensação de que eu tô cumprindo a
missão que minha mãe gostaria. Ela e meu pai tiveram um papel importantíssimo
na minha formação como escritora", emociona-se.
Organização particular, a Academia Cearense de Letras enfrenta o
desafio de se integrar ao entorno e promover um amplo diálogo sociocultural.
"Eu
acho importante o discurso de Tomás Pompeu na solenidade de aniversário do
primeiro ano da ACL, em que ele falou da Academia como uma criadora de cultura,
mantenedora de conhecimentos e difusora disso tudo. Um dos primeiros gestos que
eu gostaria de fazer é, como presidente, simbolicamente, abrir as portas da ACL
para diversos segmentos da sociedade. Nós já fazemos isso, mas de forma muito
restrita porque não temos número de funcionários suficiente para atender
multidões. Essa ação não precisa ser feita espetacularmente:
nem sempre um acontecimento cultural precisa ser monumental, ele pode acontecer
em pequenos grupos", argumenta Angela. Em um crescente cenário de sucateamento
de equipamentos culturais no Brasil, a escritora cearense aposta na força das
micropolíticas. "Acho lindo isso de clube de leitura. Por que não receber na ACL?
Nós podemos abrir espaço para pessoas que se dedicam aos versos, a dizer
poesias. Temos possibilidade também de abrigar grupos maiores, como quando
fazemos ciclos de conferência iniciados já na gestão de Arthur Benevides. Agora
estou muito interessada em trabalhar com a literatura cearense, com o escritor
cearense. Nós temos aqui escritores extraordinários a quem muito respeito", pontua.
Em uma bonita metáfora, Angela Gutiérrez compara a cultura à
catedral francesa de Reims. "Ao mesmo tempo que ela foi muito agredida ao
longo do tempo em revoluções e guerras, sempre foi reconstruída, nunca igual.
Na fachada, entre santos esculpidos, existe um anjo sorrindo (o famoso L'Ange
au Sourire). Aquele anjo me dá margem de imaginar que ele está sorrindo da
humanidade, pensando 'Por que estão destruindo, por que não estamos todos
unidos e construindo uma sociedade melhor?", finaliza.
Fonte: O Povo, de 30/01/2019.
Vida & Arte. p.1.