Mostraram-se infundadas as previsões esboçadas no
começo do ano de 2020 por autoridades e
infectologistas, divulgadas nas mídias, de que não se reproduziriam em nosso
País as preocupantes taxas de incidência e de letalidade por Covid-19,
verificadas em alguns países europeus (Bélgica, Itália, França, Espanha e
outros). Para eles, atuavam a nosso favor o clima da Terra Brasilis, inóspito ao aconchego do novo coronavírus, e a
existência do Sistema Único de Saúde (SUS), considerado, de forma ufana, o
maior e o mais abrangente sistema de saúde entre as nações com mais de cem
milhões de habitantes.
Pesarosamente, esse otimismo inicial não se
concretizou. A Covid-19, que nos idos de julho em curso já acumula uma cifra
que se aproxima de dois milhões de casos e de mais de 70 mil óbitos no Brasil, afetou
duramente a economia nacional, quando esta se encontrava em processo de
recuperação, e exibiu a vulnerabilidade da prestação de cuidados de saúde,
tanto públicos como privados, ao tempo em que se assistiu a um ingente esforço
de superação das dificuldades para o enfrentamento da pandemia.
A presente pandemia foi uma situação atípica, que
nenhum país do mundo estava preparado para enfrentá-la, mesmo os mais
desenvolvidos. Porém, ela ganhou contornos mais graves no Brasil, dentre outros
motivos, em função da deficiência da indústria da saúde brasileira, ainda muito
à mercê do mercado internacional.
A dependência de insumos produzidos no exterior, a
insuficiência de um parque industrial voltado para a saúde, a inexistência de
uma rede de atendimentos para suprir a contento a demanda usual e as
desigualdades, geográfica e social, na distribuição de recursos de saúde figuram
no rol dessas dificuldades.
Diante da inusitada e súbita pressão de demanda, com
a crescente avalanche de pacientes procurando atendimentos na rede de saúde, de
certo modo estagnada, porquanto os tíbios investimentos em saúde dos últimos
decênios sequer acompanharam o pouco crescimento demográfico experimentado, ao
tempo em que o SUS precisou, gradualmente, acomodar parte da nossa população então
marginalizada da assistência médica. Essa penúria foi agravada pela mudança do
perfil epidemiológico dos brasileiros, retratado no avanço de doenças de maior
complexidade e de custos mais exacerbados.
O montante de leitos ativos disponíveis, que já não
era suficiente para cobrir as necessidades de internamentos antes da pandemia,
requeria a sua pronta ampliação, sendo premente a expansão dos leitos de
Unidades de Terapia Intensivo (UTI), cujo histórico de carência era bem sabido,
uma vez que se estimava que cerca de 5% dos pacientes com a Covid-19 que
chegassem aos hospitais necessitariam ocupar um leito de UTI.
Os gestores de saúde, ancorados na recomendação de se
buscar o achatamento da curva epidêmica, protraindo a chegada volumosa e
simultânea de casos, precisavam engendrar mecanismos para expandir a oferta de
serviços e de leitos especificamente destinados aos cuidados de pacientes
acometidos de Covid-19.
Essa expansão de oferta fez-se pela incorporação de
leitos, novos ou habilitados, e pela realocação do estoque de leitos
existentes, reservando-os, com exclusividade, à Covid-19. O Ceará vem reagindo de maneira rápida e eficiente, na
medida do possível, mas também soma alguns equívocos, como a criação do
hospital de campanha em estádio de futebol. O Município de Fortaleza gastou
uma dinheirama em algo que demorou a ficar pronto, não é definitivo e vai
demandar mais recursos para recuperar o que era antes. Melhor seria ter
requisitado mais hospitais que estavam ociosos, como o governo estadual fez com
o Hospital Leonardo da Vinci que, inclusive, vai ajudar a reforçar o
atendimento no pós-pandemia.
No caso dos leitos de UTI, a complicação era
amplificada, não se limitando a espaço físico e instalações, uma vez que
determinava a aquisição de equipamentos médicos mais sofisticados e caros e se cobrava
a contratação de pessoal qualificado para operar esses instrumentos.
Ainda que a Covid-19 seja uma enfermidade de
repercussão sistêmica em pacientes mais graves, a insuficiência respiratória
era aspecto clínico dominante e indicativo de gravidade, sendo um forte fator
preditivo para o desenlace fatal. Para isso, era mandatório dispor de
respiradores para assegurarem a ventilação mecânica dos pacientes,
concedendo-os mais chances de sobrevivência se recebessem esse tipo de
assistência médica.
Como não havia suficiência de estoques de
respiradores para pronta entrega no mercado nacional e a fabricação desse
produto demanda tempo, as autoridades dos poderes executivos e os gestores de
saúde do Brasil apelaram para a importação de respiradores no mercado
internacional, bastante oligopolizado e concentrado, em uma acirrada e desigual
disputa entre países assustados com o avançar da Covid-19 em seus cidadãos,
quando se parecia evocar o suposto adágio bíblico “Mateus, primeiro os teus”,
com retenção de equipamentos comprados pelos concorrentes ao pousarem em seus territórios,
bem como abusar de outras práticas comerciais nada recomendáveis, a exemplo de
ágio para garantir a preferência de compra.
A situação brasileira era ainda mais constrangedora
por razões internas, dado que a intermediação comercial feita, em parte, por certos
“atravessadores” inescrupulosos e, talvez, até em conluio com alguns gestores públicos,
redundou em preços com enormes variações e em aquisições de respiradores com
valores exorbitantes, com claros indícios de superfaturamento. Tal anomalia resultou
do “aproveitamento” da decretação da calamidade pública, quando temporariamente
foram suspensos mecanismos criteriosos de controle das compras públicas,
flexibilizando e simplificando os processos licitatórios, o que inclusive
permitiu o acolhimento de propostas que tiveram pagamentos antecipados e sem a
contrapartida do recebimento da mercadoria adquirida.
Esses entraves relativos à incorporação de
respiradores foram parcialmente contornados pelos ingentes esforços para
incrementar a produção desses aparelhos, quando os fabricantes aumentaram a
capacidade produtiva e outras empresas fizeram adequações em suas linhas de
produção e passaram também a fabricar respiradores.
A associação entre a academia e os serviços de saúde
tem suscitado respostas animadoras, tanto em simplicidade como em custos de
produção e, de forma criativa, tem resultado em protótipos de respiradores, que
podem entrar em linha de produção em escala industrial, a exemplo do “Elmo”, um
respirador fruto da parceria envolvendo a Universidade de Fortaleza, o
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará e a Escola de Saúde
Pública do Ceará. Houve também um avanço principalmente na articulação para
soluções caseiras de produtos, sobretudo, os mais simples, como EPIs (máscaras,
aventais etc.).
No atual cenário cearense da Covid-19, em que
prevalece o declínio da ocorrência epidêmica em Fortaleza concomitante à sua
expansão interiorana, as compras de
novos respiradores já são prescindíveis, comportando mais, no presente, pôr em
marcha processos de referência e de contra-referência de pacientes e/ou a
efetivação de remanejamento desses aparelhos da capital para locais compatíveis
e onde se façam mais necessários.
Nesse tocante, é oportuno
salientar que a singular Unimed Fortaleza, tendo ultrapassado os momentos mais
críticos da pandemia, cedeu, à guisa de empréstimo, respiradores para a sua
congênere de Teresina, que ora vem se deparando com o avanço do novo
coronavírus entre os seus beneficiados do Piauí.
Embora de menor visibilidade pública, aconteceram
transtornos na disponibilidade de testes diagnósticos e de medicamentos
complementares (antibióticos, anti-inflamatórios, miorrelaxantes, anestésicos
etc.) usados no tratamento da Covid-19, posto que a fabricação endógena dos
mesmos depende do fornecimento de insumos e sais que são importados, sendo a
eles impingidos dissabores decorrentes da competição internacional em que a
escassez frente à demanda hiperbólica por esses bens contamina seriamente a
livre concorrência do mercado.
Para uma reestruturação mais sólida da indústria da saúde há um longo caminho
pela frente, porém algumas mudanças já
podem ser verificadas na cadeia produtiva da saúde no Ceará. Com efeito,
uma maior articulação entre Governo,
pesquisadores e empresas também tem viabilizado o desenvolvimento de
novos produtos. Assim é que a Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (Funcap) lançou, recentemente, um edital com uma linha
emergencial específica para Covid-19, ofertando investimento da ordem de R$ 2,4
milhões, para projetos que contemplem soluções para área da saúde.
Está-se, na verdade, distante de uma solução
definitiva, porém já não se permanece no mesmo patamar anterior. Há muito ainda
a progredir para diminuir essa dependência, notadamente de insumos; contudo a pandemia evidenciou, com certeza, a
importância de se ter um foco mais apurado para indústria da saúde no Brasil.
Prof. Dr.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Médico-sanitarista e economista da Saúde
* Publicado In: Jornal do médico
digital, 1(3): 60-4, julho de 2020. (Revista Médica
Independente do Ceará).