Por Olavo de Carvalho
Aprender, imitar e introjetar o vocabulário, os tiques e
trejeitos mentais e verbais da escola de pensamento dominante na sua faculdade
é, para o jovem estudante, um desafio colossal e o cartão de ingresso na
comunidade dos seus maiores, os tão admirados professores.
A aquisição dessa linguagem é tão dificultosa, apelando aos
recursos mais sutis da memória, da imaginação, da habilidade cênica e da
autopersuasão, que seria tolo concebê-la como uma simples conquista
intelectual. Ela é, na verdade, um rito de passagem, uma transformação
psicológica, a criação de um novo “personagem”, apoiado no qual o estudante se
despirá dos últimos resíduos da sentimentalidade doméstica e ingressará no
mundo adulto da participação social ativa.
É quase impossível que essa identificação profunda com o
personagem aprendido não seja interpretada subjetivamente como uma concordância
intelectual, ao ponto de que, no instante mesmo em que repete fielmente o
discurso decorado, ou no máximo faz variações em torno dele, o neófito jure
estar “pensando com a própria cabeça” e “exercendo o pensamento crítico”.
A imitação é, com certeza, o começo de todo aprendizado, mas
ela só funciona porque você imita uma coisa, depois outra, depois uma
infinidade delas, e com a soma dos truques imitados compõe no fim a sua própria
maneira de sentir, pensar e dizer.
No aprendizado da arte literária isso é mais do que patente.
O simples esforço de assimilar auditivamente a maneira, o tom, o ritmo, o
estilo de um grande escritor já é uma imitação mental, uma reprodução interior
daquilo que você está lendo. A imitação torna-se ainda mais visível quando você
decora e declama poemas, discursos, sermões ou capítulos de uma narrativa.
Porém nas suas primeiras investidas na arte da escrita é impossível que você
não copie, adaptando-os às suas necessidades expressivas, os giros de linguagem
que aprendeu em Machado de Assis, Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco,
Balzac, Stendhal e não sei mais quantos. Esse exercício, se você é um escritor
sério, continua pela vida a fora. Quando conheci Herberto Sales – que Otto Maria
Carpeaux julgava o escritor dotado de mais consciência artística já nascido
neste país --, ele estava sentado no saguão do Hotel Glória com um volume de
Proust e um caderninho onde anotava cada solução expressiva encontrada pelo
romancista, para usá-la a seu modo quando precisasse. Já era um homem de
setenta e tantos anos, e ainda estava praticando as lições do velho Antoine
Albalat.[1] É assim, por acumulação e diversificação dos recursos aprendidos,
que se forma, pari passu com a evolução natural da personalidade, o estilo
pessoal que singulariza um escritor entre todos. T. S. Eliot ensinava que um
escritor só é verdadeiramente grande quando nos seus escritos transparece, como
em filigrana, toda a história da arte literária.
Em outros tipos de aprendizado, a imitação é ainda mais
decisiva. Nas artes marciais e na ginástica, quantas vezes você não tem de
repetir o gesto do seu instrutor até aprender a produzi-lo por si próprio! Na
música, quantas performances magistrais o pianista não aprende de cor até produzir
a sua própria!
Nas ciências e na tecnologia, o manejo de equipamentos
complexos nunca se aprende só em manuais de instrução: o aluno tem de ver e
imitar o técnico mais experiente, num processo de assimilação sutil que
engloba, em doses consideráveis, a transmissão não-verbal. [2]
Por que seria diferente na filosofia? Compreender uma
filosofia não se resume nunca em ler as obras de um filósofo e julgá-las
segundo uma reação imediata ou as opiniões de um professor. É impregnar-se de
um modo de ver e pensar como se ele fosse o seu próprio, é olhar o mundo com os
olhos do filósofo, com ampla simpatia e sem medo de contaminar-se dos seus
possíveis erros. Se desde o início você já lê com olhos críticos, buscando
erros e limitações, o que você está fazendo é reduzir o filósofo à escala das
suas próprias impressões, em vez de ampliar-se até abranger o “universo” dele.
Erros e limitações não devem ser buscados, devem surgir naturalmente à medida
que você assimila novos e novos autores, novos e novos estilos de pensar,
pesando cada um na balança da tradição filosófica e não da sua incultura de
principiante. Não seria errado dizer que, entre outros critérios, um professor
de filosofia deve ser julgado, sobretudo, pelo número e variedade dos autores,
das escolas de pensamento, das vias de conhecimento que abriu em leque para que
seus estudantes as percorressem. [3]
Não é preciso mais exemplos. Em todos esses casos, a
imitação é o gatilho que põe em movimento o aprendizado, e em todos esses casos
ela não se congela em repetição servil porque o aprendiz passa de modelo a
modelo, incorporando uma diversidade de percepções e estilos que acabarão
espontaneamente se condensando numa fórmula pessoal, irredutível a qualquer dos
seus componentes aprendidos.
Mas o que acontece se, em vez disso, o aluno é submetido,
por anos a fio, à influência monopolística de um estilo de pensamento
dominante, aliás muito limitado no seu escopo e na sua esfera de interesses, e
adestrado para desinteressar-se de tudo o mais sob a desculpa de que “não é
referência universitária”?
Se durante quatro, cinco ou seis anos você é obrigado a
imitar sempre a mesma coisa, e ainda temendo que o fracasso em adaptar-se a ela
marque o fim da sua carreira universitária, a imitação deixa de ser um
exercício temporário e se torna o seu modo permanente de ser – um “hábito”, no
sentido aristotélico.
É como um ator que, forçado a representar sempre um só
personagem, não só no palco mas na vida diária, acabasse incapaz de se
distinguir dele e de representar qualquer outro personagem, inclusive o seu
próprio. Pirandello explorou magistralmente essa situação absurda na peça
Henrique IV, onde um milionário louco, imaginando ser o rei, obriga os
empregados a comportar-se como funcionários da côrte, até que eles acabam se convencendo
de que são mesmo isso.
Toda imitação depende de uma abertura da alma, de uma
impregnação empática, de uma suspension
of disbelief em que o outro deixa de ser o outro e se torna uma parte de
nós mesmos, sentindo com o nosso coração e falando com a nossa voz. Se
praticamos isso com muitos modelos diversos, sem medo das contradições e
perplexidades, nossa mente se enriquece ao ponto do nihil humanum a me alienum, daquela universalidade de perspectivas
que nos liberta do ambiente mental imediato e nos torna juízes melhores de tudo
quanto chega ao nosso conhecimento. Não é errado dizer que o julgamento honesto
e objetivo depende inteiramente da variedade dos pontos de vista,
contraditórios inclusive, que podemos adotar como “nossos” no trato de qualquer
questão.
Em contrapartida, o enrijecimento da alma num papel fixo
abusa da capacidade de imitação até corrompê-la e extingui-la por completo,
bloqueando toda possibilidade de abertura empática a novos personagens, a novos
estilos, a novos sentimentos e modos de ver.
Habituado a tomar como referência única o conjunto de livros
e autores que compõe o universo mental da esquerda militante, e a olhar com
temerosa desconfiança tudo o mais, o estudante não só se fecha num
provincianismo que se imagina o centro do mundo, mas perde realmente a
capacidade de aprendizado, tornando-se um repetidor de tiques e chavões,
caquético antes do tempo.
Quem não sabe que, no meio acadêmico brasileiro, a receita
uniforme, há mais de meio século, é Marx-Nietzsche-Sartre-Foucault-Lacan-Derrida,
não se admitindo outros acréscimos senão os que pareçam estender de algum modo
essa tradição, como Slavoj Zizek, Istvan Meszaros ou os arremedos de pensamento
que levam, nos EUA, o nome de “estudos culturais”?
Daí a reação de horror sacrossanto, de ódio irracional, não
raro de repugnância física, com que tantos estudantes das nossas universidades
reagem a toda opinião ou atitude que lhes pareça antagônica ao que aprenderam
de seus professores. Não que estejam realmente persuadidos, intelectualmente,
daquilo que estes lhes ensinaram. Se o estivessem, reagiriam com o intelecto,
não com o estômago. O que os move não é uma convicção profunda, séria,
refletida: é apenas a impossibilidade psicológica de desligar-se, mesmo por um
momento, do “eu” artificial aprendido, cuja construção lhes custou tanto
esforço, tanto investimento emocional.
Justamente, a convicção intelectual genuína só pode nascer
da experiência, do longo demorado com os aspectos contraditórios de uma
questão, o que é impossível sem uma longa resignação ao estado de dúvida e
perplexidade. A intensidade passional que se expressa em gritos de horror, em
insultos, em afetações de superioridade ilusória, marca, na verdade, a
fragilidade ou ausência completa de uma convicção intelectual. A construção em
bloco de um personagem amoldado às exigências sociais e psicológicas de um
ambiente ideologicamente carregado e intelectualmente pobre fecha o caminho da
experiência, portanto de todo aprendizado subsequente.
A irracionalidade da situação é ainda mais enfatizada porque
o discurso desse personagem o adorna com o prestígio de um rebelde, de um
espírito independente em luta contra todos os conformismos. Poucas coisas são
tão grotescas quanto a coexistência pacífica, insensível, inconsciente e satisfeita
de si, da afetação de inconformismo com a subserviência completa à autoridade
de um corpo docente.
No auge da alienação, o garoto que passou cinco anos
intoxicando-se de retórica marxista-feminista-multiculturalista-gayzista nas
salas de aula, que reage com quatro pedras na mão ante qualquer palavra que
antagonize a opinião de seus professores esquerdistas, jura, depois de ler uns
parágrafos de Bourdieu para a prova, que a universidade é o “aparato de
reprodução da ideologia burguesa”. Aí já não se trata nem mesmo de “paralaxe
cognitiva”, mas de um completo e definitivo divórcio entre a mente e a
realidade, entre a máquina de falar e a experiência viva.
Se, conforme se observou em pesquisa recente, cinqüenta por
cento dos nossos estudantes universitários são analfabetos funcionais [4] – não
havendo razão plausível para supor que a quota seja menor entre seus
professores mais jovens --, isso não se deve somente a uma genérica e abstrata
“má qualidade do ensino”, mas a um fechamento de perspectivas que é buscado e
imposto como um objetivo desejável.
Não que a presente geração de professores que dá o tom nas
universidades brasileiras tenha buscado, de maneira consciente e deliberada, a
estupidificação de seus alunos. Apenas, iludidos pelo slogan que os qualificava
desde os anos 60 do século XX como “a parcela mais esclarecida da população”,
tomaram-se a si próprios como modelos de toda vida intelectual superior e
acharam que, impondo esses modelos a seus alunos, estavam criando uma plêiade
de gênios. Medindo-se na escala de uma grandeza ilusória, incapazes de enxergar
acima de suas próprias cabeças, tornaram-se portadores endêmicos da síndrome de
Dunning-Kruger[5] e a transmitiram às novas gerações. Os cinqüenta por cento de
analfabetos funcionais que eles produziram são a imagem exata da sua síntese de
incompetência e presunção.
Notas:
[1] V. Antoine Albalat, La Formation du Style par l'Assimilation des
Auteurs (Paris, Alcan, 1901).
[2] V. sobre isso as considerações de Theodore M. Porter
em Trust in Numbers. The Pursuit of Objectivity in Science and Public
Life, Princeton University Press, 1995, pp. 12-17.
[3] Digo isso com a consciência tranqüila de haver
cumprido esse dever. Ao longo dos anos, introduzi no espaço mental brasileiro
mais livros e autores essenciais do que todos os corpos docentes de
faculdades de filosofia neste país, somados aos “formadores de opinião” da
mídia popular. Em vez de me agradecer, ou de pelo menos ter a sua curiosidade
despertada pela súbita abertura de perspectivas, estudantes e professores, com
freqüência, me acusaram de “citar autores desconhecidos” – dando por
pressuposto que tudo o que é ignorado no seu ambiente imediato é desconhecido
do resto do mundo e não tem a mais mínima importância.
[5] Efeito Dunning-Kruger: incapacidade de comparar
objetivamente as próprias habilidades com as dos outros. “Quanto menos você
sabe sobre um assunto, menos coisas acredita que há para saber.” V. David
McRaney, You Are Not So Smart, London, Oneworld Publications, 2012, pp. 78-81.
Publicado no Digesto Econômico. 19 Julho 2014.