A Fortaleza provinciana da primeira metade do século passado, tal como hoje ainda acontece em pequenas cidades do interior cearense, registrava a presença de personagens, com particularidades que os distinguiam da população, em geral, e que, por conta disso, viravam alvo da chacota ou da gozação dos demais moradores. As brincadeiras quebravam a pasmaceira ou a monotonia social, ou, até mesmo, serviam de agressão a cidadãos desvalidos, configurando aquilo que se convenciona tachar, atualmente, de ações “politicamente incorretas”.
Vicente Moraes, no primoroso livro de memórias, denominado “Anos Dourados em Otávio Bonfim: à memória de Frei Teodoro”, dedica o Capítulo XIII aos “Tipos Populares” do bairro, nos anos 1950/60, tornados conhecidos pela maneira de vida diferente que levavam. Alguns deles eram conhecidos em toda a cidade. Outros se notabilizaram por um traço físico, como o Seu Pedro “Oião”; por um ofício, citando-se o Dão, um carpinteiro famoso pelas bombas e fogos de artifício, que fabricava artesanalmente; ou por certas manias, em referência ao Zé do Vale, que virou símbolo de mitômano ou de algo exagerado.
Havia aqueles com presença marcada no anedotário local, desde a década anterior, e outros alcançaram o período do Frei Lauro, entre 1967 e 1975, como era o caso do Luciano e do “Maria Alice”. É possível que muitos desses tipos já nem vivessem mais nos anos sessenta, mas permaneceram no imaginário coletivo, por conta de suas “graças”, das suas tiradas folclóricas, cujas estórias atravessaram gerações, a exemplo do Pedro da Jumenta e da sua Maria Rosa.
Luciano – era o homem do rádio. Perambulava pelas ruas com um pseudo-microfone, transmitindo uma programação de rádio, de uma emissora de sua imaginação, irradiando “notícias e reclames” por ele produzidos; alguns dos comerciais eram de empresas reais, que pagavam uma módica quantia, em espécie, para que ele veiculasse os anúncios, de interesse promocional.
Maria Alice – era, segundo Moraes, na época do Frei Teodoro, um rapaz alegre, de nome desconhecido, dono de uma banca de café, que servia cafezinho, bolos, tapioca e cuscuz aos fiéis que vinham para a missa das 4h da madrugada ou a das 6 horas da manhã; por seus trejeitos, um tanto quanto efeminados, ganhara esse apelido e, ao ser assim chamado, partia para cima de quem o ofendera, que se não desembestasse, numa longa carreira, terminaria nas vias de fato, como se dizia.
Na época do Frei Lauro, esse senhor vivia a depender da caridade alheia, sendo visto ao lado dos suplicantes na fila do Pão dos Pobres, da terça-feira, postado junto ao pátio da Igreja; já tinha então os cabelos grisalhos e barba encanecida e por fazer, sendo seu costume enrolar a cabeça com um pano branco. A molecagem desse tempo não lhe dava descanso: no momento em que ele recebia um donativo ou um óbolo qualquer, maldosamente anunciava que ele era um falso mendicante, tinha posse de várias casas ou vilas, e começava a chamá-lo de “Maria Alice”; a resposta dele vinha sob a forma de palavrões “desmunhecados” e de arremesso de objetos, sobretudo de pedras, contra os provocadores, haja vista não possuir mais o vigor físico para as corridas, como dantes fazia.
Prof. Marcelo Gurgel Carlos da Silva
* Publicado In: Jornal O Povo. Fortaleza, 14 de agosto de 2010. Jornal do Leitor. p.1.
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