Meraldo
Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Certa palavra possui matiz poético. Refiro-me à transparência. Meigo
verbete que na Física Ótica significa a propriedade de um corpo que se deixa
atravessar pela luz e permite o reconhecimento de objetos observados através
dele. A qualidade de transparente é a de um corpo que se deixa atravessar por
uma quantidade de luz que torna possível vislumbrar o formato dos objetos atrás
dele.
Nos casos das radiações luminosas (feixes), a medida é a absorção da
energia luminosa; os corpos que conseguem absorver mais energia são denominados
opacos. Enquanto os que se deixam transpassar sem absorção alguma são chamados
de transparentes.
Tudo bem para a transparência, até agora.
Mas leia o que escreve, após a chamada Primavera de Praga (1968), o
romancista checo, asilado na França, Milan Kundera in "A Arte do
Romance", Edições D. Quixote:
“Transparência”
No discurso político e jornalístico, esta palavra significa: o desvendar
da vida dos indivíduos perante o olhar público. O que nos remete a André Breton
(1896-1966) e ao seu desejo de viver numa casa de vidro sob os olhares de todos. A casa de vidro: uma velha
utopia e, ao mesmo tempo, um dos aspectos mais assustadores da vida moderna.
Regra: mais os assuntos de estado são opacos, mais transparentes devem ser os
assuntos de um indivíduo; a burocracia, embora represente uma coisa pública, é anônima, secreta, codificada, ininteligível, enquanto
o homem privado é obrigado a divulgar a sua saúde, as suas finanças, a sua
situação de família, e, se o veredicto mass-mediático assim o decidiu, não
encontrará mais um único instante de intimidade, nem em amor, nem na doença,
nem na morte. O desejo de violar a intimidade de outrem é uma forma imemorial
de agressividade que está institucionalizada (a burocracia com os seus
documentos, a imprensa com os seus repórteres), moralmente justificada (o
direito à informação transformada no primeiro dos direitos do homem) e
poetizada (pela bela palavra transparência).
E eu, aqui do meu canto, arremato com dois exemplos:
2. O prazer transparecia no rosto da jovem.
Quem tinha como sinônimo a limpidez (a "transparência da água")
está agora ligada irremediavelmente à roubalheira e à corrupção.
Pobre destino da transparência.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco.
Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE)
e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).
Nenhum comentário:
Postar um comentário