segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

A MULHER DE SÓCRATES

José Jackson Coelho Sampaio (*)

Por qual vereda, nervura ou artéria cultural, na travessia da memória das gerações, foi sendo construída a imagem que temos da mulher de Sócrates? A princípio Xantipa, companheira desinibida e altiva, capaz do diálogo, parecia, inclusive, bela. Ao longo do tempo tornou-se a personificação de feiura, intolerância e irritabilidade.
Tantas guerras, e os homens rareavam, então foi autorizado aos sobreviventes terem outra mulher e a segunda mulher de Sócrates, Mirto, lhe deu mais filhos, e esta foi uma experiência muito amarga para Xantipa. O costume dele de devaneios reflexivos em meio a qualquer atividade, pouco prático em relação à sobrevivência, ensinando gratuitamente e cultivando a pobreza, foi outra experiência muito amarga, deixando Xantipa sempre ao azar da boa vontade de seus amigos e discípulos.
Capaz do amor, sabia-se vaso utilitário para a reprodução e não suportava a ternura e o desejo de Sócrates postos em Alcibíades. Também não suportava a dedicação aos discípulos, como Platão ou Xenofonte, cuja orientação se dava a qualquer momento ou lugar, bastando ser pedida. Ou a condescendência com que respondia ao deboche com que o amigo Aristófanes o tratava em suas peças teatrais.
Filho de escultor e de parteira, o filósofo entendeu que o parto do conhecimento exigia trabalho para extraí-lo da pedra bruta do saber vivido, removendo o acidental. Pelo ácido da ironia corroia os preconceitos e a suja espuma do senso comum. Pela maiêutica revelava a serena sabedoria inadvertida à consciência do sabedor acomodado. Nos costumes, porém, não escapou de sua época.
Xantipa cuidava, apoiava e alimentava a todos, sabia não alçar-se à ética e à estética do desejo, perdia a forma juvenil, não era e nem tinha discípulo, protegia Sócrates da maledicência dos inimigos, mas não conseguiu convencê-lo a fugir de Atenas e escapar da acusação de corruptor dos jovens por estimular a competência crítica. Xantipa cuidava, apoiava e alimentava, sem reconhecimento. E nem hoje a respeitamos.
(*) Professor titular em saúde pública e reitor da Uece.
Publicado In: O Povo, Opinião, de 27/12/14. p.8.

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