sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

AOS VIVOS: "Bunina"


Bunina

Asseverou que não carecia eu plantar todas aquelas mudas, quando eu quisesse sentir o cheiro da Bunina era só vir ao seu jardim. Foi a primeira frase dele que senti certa intenção de me dar uma lição; não uma lição de mestre culto, universidade, desses cheios de empáfia e poses; mas, sim, lição de vida, cálida, sempre cercada de gestos e cuidados. Concluí que não devemos querer tudo, muitas vezes pedir emprestado até dá motivo para uma boa prosa.
Logo que entrei em sua cozinha já sorvi o cheiro do café, que me inundou os pulmões, chegando rápido até o coração. Em cima da mesinha ao lado da rede uma Bíblia de Jerusalém vermelha e um livrinho de religião oriental. No canto da sala, uma vela acesa dentro de meia garrafa plástica de refrigerante.
Certo que ele, viúvo convicto, sempre se saía com uma frase, palavrinha que fosse com sentido mole, querendo ser verdade por trás da boca enrugada. Fui aprendendo, aos poucos, a tirar o leite da cabra, a escutar o besouro mangangá no tremido da cerca de madeira quase apodrecida.
Dia desses foi mais direto, quase aconselhando: "Na vida, temos que fazer as coisas sem pressa, viu, Candinha!?" - falou para uma amiga mas olhando com um dos seus muitos olhos para mim. Sem qualquer arrogância, essa espécie orgulhosa de superioridade que, muitas vezes, a idade avançada vai pregando em nós, ficou como que esperando uma interferência minha na suposta conversa. "Mas sempre devagar?", resolvi inquirir em meio a um sorriso maroto, não querendo ser explicitamente irônico, que era para não contrariar o amigo tão gentil. Filosofia que aprendi com meu falecido pai: nunca contrariar alguém mais velho, sempre contrariar alguém mais novo.
Coloquei a sentença singela no meu matulão e passei a semana pensando nela. A frase caberia com perfeição a mim, que fui sempre um "marcha lenta", "devagar-quase-parando"... Ou, como diz minha mãe Eugênia: um "imaginário".
Nem digeri direito sua sentença aparentemente simples e ele já me tascava outra, desta vez já claramente estabelecendo comigo um diálogo meio estranho, eu tentando decifrar seus ensinamentos de vida, querendo me passar mais e mais outros. Vezes até evito passar rente à mureta de seu belo jardim. Verdades - às vezes - se tornam fardos, pesam em nossos ombros... Mas isso já sou eu quem diz, procurando um ouvinte invisível. Acho que me viciei em lições de vida, em verdades camufladas nas frases singelas, principalmente ditas por pessoas mais velhas...
Basta passar em sua calçada, sentir o cheiro doce da Bunina, para que eu já fique imaginando sua respiração pausada: "Acredite em tudo, meu filho, até em horóscopo de jornal"; então olho desconfiado na direção da casa singela, balanço ligeiro a cabeça, tentando afugentar o restinho da frase, mas resvala ainda nos ouvidos um "faz bem" conformado.
Culpa de meu anfitrião, que nos dias difíceis de hoje ainda encontra tempo para me surpreender com palavras: "Meu filho, reze para seus inimigos!". Vendo meu espanto, dando um tempo para que eu bebesse ao menos dois goles do seu ótimo suco de maracujá, me segredou com olhos arregalados, como se decifrasse um vocábulo óbvio de uma palavra-cruzada: "Assim, eles te deixarão em paz!".
Fonte: O POVO, de 28/03/2019. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

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