Os dados da situação são bastante claros. Quando o mesmo governo que prepara, estimula e financia arruaças emite um decreto que lhe permite usar as Forças Armadas para reprimi-las, e quando, ao mesmo tempo, as autoridades e os arruaceiros se acusam mutuamente de “direitistas”, está na hora de o cidadão avisado lembrar-se, caso já os conheça, dos versos de Antonio Machado:
y escucho solamente,
entre las voces, una.”
Essa condição só não equivale à
perfeita inexistência porque esse nome feio tem uma função histórica a cumprir,
e a tem cumprido de maneira exemplar. Sem ele, a esquerda, que domina praticamente
sem oposição o Estado, a cultura, a mídia, a educação e a mente da sociedade,
tendo mesmo a seus pés todos os antigos oligarcas regionais que um dia
personificaram a “direita”, não teria como explicar para si mesma e para a
opinião pública por que ainda não conseguiu, com tantos recursos e
defrontando-se com tão pouca ou nula resistência organizada, criar neste país o
paraíso de paz e prosperidade socialistas que ela promete há sete décadas. Não
teria como explicar os setenta mil homicídios anuais, a distribuição orgiástica
de favores milionários aos altos funcionários e amigos do governo, a corrupção
ampliada até à escala do indescritível, o crescimento galopante do consumo de
drogas, a desordem e o medo generalizados, os horrores e abjeções da educação
nacional e o endividamento-monstro de um povo a quem todos os dias se diz que
não deve se preocupar, porque tem todas as contas pagas (v.
http://dinheiropublico.blogfolha.uol.com.br/2013/08/31/juros-da-divida-consomem-tanto-dinheiro-publico-quanto-a-educacao/).
Eis a função histórica que cabe
à palavra “direita”. Direi que é a de um bode expiatório? Não, porque para
sacrificar um bode expiatório é preciso um bode, não apenas a palavra que o
designa. Na medida em que xingam uma à outra de direitistas, a esquerda “de
cima” e a esquerda “de baixo” -- personificadas simbolicamente pela presidente
Dilma e pelos Black Blocks --, sem sacrificar nada mais que um verbete de
dicionário, se absolvem e se isentam da obrigação de enxergar a miséria e a
vergonha que, em nome de um socialismo que nem sabem dizer qual seja, têm
espalhado por toda parte. O que quer que ambas façam de errado, de torpe, de
criminoso, vai para a conta de uma “direita” que, não existindo, também nada
paga pelos crimes que lhe imputam.
Mas o apelo a essa
prestidigitação vocabular não funcionaria, não teria credibilidade nem mesmo
para esses artistas do auto-engano que são os militantes de esquerda, se não
houvesse no quadro nacional algumas coisas que, sem ser a direita política,
podem fazer as vezes dela ad hoc.
A primeira dessas coisas é a
burguesia. Ela existe e, como dizia Marx, tem interesses objetivos a defender.
O fato de que essa classe só se relacione com as autoridades na base dos afagos
e beijinhos, de que portanto veja com horror a mera sugestão de combatê-lo no
campo político, deve, nesse quadro, ser negligenciado para que se possa
proclamar, com o sr. Leonardo Boff, que “os atores da direita estão bem
posicionados institucionalmente e politicamente” e que para desalojá-los é
preciso dar todo apoio à sra. Dilma Rousseff, ou, com o deputado psolista Ivan
Valente, que pela mesmíssima razão é preciso denunciar a presidente como uma
reencarnação do general Médici. As duas hipóteses funcionam igualmente bem: a
única força política existente se absolve dos seus pecados, e a inexistente, é
claro, também nada paga por eles.
A segunda coisa que se parece
vagamente com uma direita política são os jornalistas e blogueiros que criticam
ao mesmo tempo o governo e os arruaceiros, a esquerda oficial e a oficiosa. Sem
nenhuma conexão partidária, sem subsídios de qualquer espécie e sem nenhum
plano nem mesmo hipotético de tomada do poder, eles são uma oposição meramente
cultural sem meios nem desejo de ação política. Mas, como dizem o que pensam, e
o que pensam ecoa alguma insatisfação popular difusa, é claro que as duas
esquerdas apontam neles a arma polêmica do interesse capitalista e advertem que
são “uma ameaça às liberdades civis”. Dessa maneira a esquerda governante é
dispensada de explicar sua aliança promíscua com a burguesia, a esquerda
arruaceira dispensada de explicar sua aliança promiscua com o governo, e a
burguesia assegurada de que tudo o que faça de ruim em parceria com o governo
será debitado na conta de jornalistas sem um tostão furado no bolso, que
desprezam tanto a ela quanto ao governo. Ficam assim tranqüilizadas as
consciências esquerdistas de cima e de baixo, bem como as de seus aliados
burgueses, felizes de que aqueles que não a representam de maneira alguma sejam
apontados como seus representantes e castigados no lugar dela sob esse
pretexto. Esse é o único papel histórico da “direita” hoje em dia: ser o nome
do mal e isentar de culpas aqueles que o praticam. A indústria brasileira de
alucinógenos verbais é uma das maravilhas da tecnologia moderna.
Publicado no Diário do Comércio, 8 de fevereiro de 2014.
Nota do Blog: o texto não
é novo, mas segue atualizado.
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