Médico-Psicoterapeuta
Até hoje não sei o porquê de querer comparar as vítimas da
fome com animais em vias de extinção. Parece com os dermatologistas que quando
encontram alguma doença de péssima aparência costumam batizá-la como framboesa,
limão, laranja, frutas saborosas ou belas. Hemorroidas, também quando se
exteriorizam, recebem o nome de couve-flor e até os proctologistas entram nessa
taxinomia macabra. E assim vai.
Perguntaram certa feita ao escritor Ernest Hemingway sobre
a sua perspectiva para o ano seguinte. Ele respondeu: “Como vou saber do que
vai acontecer daqui a um ano se não posso dizer o que vai acontecer no próximo
segundo?” Não me perguntem a causa dessas comparações dos leigos, cientistas,
clérigos e militares. Como Hemingway, direi: Não sei.
Não conformado com os bichos, me volto para os Pigmeus,
negrinhos pequenos da África que não crescem por problemas ou caracteres
genéticos. Comparei-os ao nordestino que não cresce por falta de comida. Até
escrevi um livro, de relativo sucesso editorial. Tive a petulância, ou
inocência, de apelidar o livro de “Nordeste Pigmeu”. Soube depois que os
Pigmeus já estão se acabando porque não cresceram. Contam-se aos mil, enquanto
a raça de nanicos nordestina aumenta cada vez mais.
Depois, veio o homem gabiru. Imaginem comparar um filho de
Deus, com alma e tudo, aos nojentos ratões somente por estarem com fome, por
não terem o que comer. Agora, surge essa história pré-histórica de mãe canguru.
O canguru é um mamífero retrógrado e atrasado na escala zoológica e que aborta
os canguruzinhos antes do tempo. Arrependidos, e para compensar a maldade,
guardam os filhotes numa enorme bolsa de pele agarrada à própria barriga.
Dentro dessa bolsa cheia de mamilos, as mães cangurus guardam os filhotes
precocemente expulsos do útero para que não morram de fome e frio.
Mães que assim procedem devem ser castigadas. Acho que Deus
já está procurando solucionar o problema com a extinção dessas mães desalmadas,
que doutores cientistas que pensam tudo saber chamam de marsupiais. É bom
lembrar que os cangurus não passam de ratos gigantes que andam aos pulos. São
os gabirus da Austrália.
Vamos a outro fato: o nosso mais antigo jornal em
circulação na América Latina noticiou outro dia a realização de um Encontro
Nacional de Assistência à Mãe Canguru. O evento pretende analisar o modelo de
assistência ao recém-nascido. Fiquei meio confuso ao ler tal anúncio e gostaria
de saber se é bebé de gente ou de canguru. Se for de canguru, tudo bem, estarei
lá, pois devo, como homem do terceiro milênio, a obrigação de ser um engajado
em todos os movimentos de preservação da natureza.
Outra coisa mais insólita são também os programas de
aproveitamento de restos alimentícios – casca de fruta, bagaço de cana e outros
lixos. Sei que o lixo da Avenida Boa Viagem, dos prédios que dão para
Navegantes, é disputadíssimo pelos cata-lixo ou homens e mulheres gabirus. Não
quero chamá-los de urubus na carniça. Pra azar meu, isso poderia virar samba e
até frevo-canção. Espero que não adotem esse nome, pois tenho uma sorte danada
para apelidar essas desgraças. Como se o pobre que passa fome – adultos, velhos
e crianças – fossem uns porcos, para comer resto de comida ou mais sutilmente
denominado de Lixivia. Ou restos de sobras que não sobram.
Assim já é demais. Espero que não apelidem, estes doutores
da fome, de rato branco, pois são, esses médicos que fazem ciência com a fome
dos outros que assim deveriam ser denominados por castigo. Acho que estão
criando um novo jogo de bicho, mas espero que um dia descubram que não se faz
ciência com a miséria alheia. São muito folclóricos esses “brasilianistas
brasileiros”.
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Nota 1: Este artigo foi publicado no ano
de 1999.
Nota 2: Ao folhearmos jornais antigos já
não nos interessamos pelas notícias, pois são velhas e datadas. Já as crônicas
da época, sem a contaminação do factual, acabam por se mostrar mais duradouras,
e podem ser lidas, com interesse, décadas depois. “É curioso que sendo ‘soft
news’ ou ‘no news’, a crônica tenha mais sobrevivência que o ‘hard news’”. (Ruy
Castro)
(*) Professor Titular da Pediatria
da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União
Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos
(ABRAMES). Consultante
Honorário da Universidade de Oxford (Grã-Bretanha). Foi um dos primeiros
neonatologistas brasileiros.
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