Marcelo
Gurgel Carlos da Silva
Das Academias Cearenses de Medicina e de Saúde Pública
Em 22/05/2020, a revista The
Lancet publicou o artigo: “Hydroxychloroquine or chloroquine with or
without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry
analysis”, assinado por Mandeep R Mehra, Sapan S Desai, Frank Ruschitzka e Amit
N Patel, que firmou a conclusão de que não fora possível ratificar um benefício
da hidroxicloroquina (HCQ) ou da cloroquina (CLQ), quando usadas, isoladamente
ou associadas com um macrolídeo, nos desfechos hospitalares do tratamento da
Covid-19. Ademais, segundo os seus autores, cada um desses esquemas
terapêuticos foi relacionado com a redução da sobrevida e o aumento da
frequência de arritmias ventriculares, resultando em substantivo incremento da
taxa de letalidade por Covid-19.
De pronto, como consequência dessa publicação, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) determinou a retirada de CLQ/HCQ dos braços comparativos
de um grande estudo multicêntrico por ela avalizado. A repercussão de tal
decisão afetou duramente muitos ensaios clínicos randomizados em andamento,
conduzidos por pesquisadores e instituições independentes, que passaram a ter
dificuldades no recrutamento de sujeitos de pesquisa, uma vez que, sendo
estudos do tipo duplo-cego, os pacientes temiam ser alocados em grupos que
faziam uso de CLQ/HCQ, o que poderia resultar em malefícios e sem benefícios.
A publicação da Lancet
foi alvo de severas críticas por suas graves falhas metodológicas na tentativa
de construção de uma metanálise. O trabalho em foco, embora contivesse
supostamente um “n” bastante elevado, era uma revisão sistemática baseada em
estudos observacionais. Os vícios de seleção, de aferição e de confusão eram
patentes, comprometendo o delineamento e a análise do estudo.
Claro está que o pseudo-estudo não cumpriria as regras da Critical Appraisal Topics (CATs), uma
técnica da epidemiologia clínica e da medicina baseada em evidências para
analisar os artigos científicos e não mereceria ter sido publicado em
periódicos científicos, que adotem rígidos critérios de avaliação dos “papers”
submetidos.
A rapidez da publicização, considerando o intervalo decorrido
a partir da submissão, diferentemente do largo tempo que usualmente se decorre
para os autores verem seus artigos publicados, leva a crer que o estudo de
Mehra et al. não deva ter sido alvo de avaliação de pareceristas ou de revisão
por pares, tendo, talvez, a sua aprovação limitada ao conselho editorial ou,
quiçá, uma decisão monocrática do editor-chefe de The Lancet.
O mais pungente viés do artigo mencionado, porém, foi a
recusa da abertura do banco original dos dados, da parte da empresa detentora
do “bigdata”, para uma auditoria externa independente, sob a alegativa de existirem
cláusulas de confidencialidade com os seus fornecedores, pairando dúvidas
quanto à qualidade e à integridade dos dados, e até suscitando a desconfiança
pública de que a pesquisa não passava de uma tentativa de burla científica.
Diante da avalanche de críticas ao trabalho,
reconhecidamente eivado de falhas, três dos seus autores, antecipando-se a uma
sentença de exclusão editorial que seria mais desastrosa cientificamente para
eles, apresentaram uma solicitação de retratação à revista, que foi acolhida,
redundando em “despublicação” do vexaminoso artigo, ao cabo de duas semanas.
Ato contínuo, a OMS revisou o seu procedimento anterior,
revogando o veto que fizera à inserção de CLQ/HCQ na pesquisa que patrocinava,
reintroduzindo esses medicamentos nessa investigação.
A revista The Lancet,
que em 2024 completará 200 anos de edição ininterrupta, deu guarida em suas
páginas, em 1998, ao artigo que associou o uso de vacinas à ocorrência de
autismo. Com essa publicação a The Lancet
prestou um desserviço à Saúde Pública ao oferecer um suposto alicerce
científico aos grupos que se opõem à vacinação. O pesquisador principal, que
assumiu a autoria do artigo, teve a sua licença médica cassada no Reino Unido e
a revista somente se retratou do seu grave equívoco em 2010.
Lembre-se ainda que The Lancet foi uma das cinco revistas
médicas de notória acreditação que foram objeto de análise crítica conduzida
por Sackett et al., da McMaster University, na década de 1980,
cujo resultado desse estudo apontava que cerca de metade dos trabalhos
publicados nesses periódicos tinha graves erros metodológicos que comprometiam
a validade dos seus artigos.
Um desdobramento desse impactante estudo foi a
conscientização dos editores de revistas médicas para aprimorarem o processo de
avaliação dos artigos submetidos que passaram a ser apreciados com maior apuro
e rigor científico dos revisores e dos conselhos editoriais.
As revistas médicas, em geral, lograram ter uma melhor
qualidade, mas, às vezes, os editores são displicentes e deixam passar
trabalhos com falhas metodológicas que os revisores não perceberam a tempo. A
urgência em publicar um tema candente, a exemplo da presente pandemia da
Covid-19, e de se antecipar a outros veículos pode estar no fulcro da tomada de
decisão equivocada da revista The Lancet.
Agora, ao intentar erroneamente lancetar a cloroquina e a
hidroxicloroquina, o vetusto periódico médico deixou cair o bisturi no seu
hálux, como quem dá um tiro no próprio pé ou, como queira, dito de outra forma,
o tiro saiu pela culatra, e assim foi mais do que chamuscado no aludido
episódio, com perda de credibilidade científica, a ser aferida em cancelamentos,
ou mesmo de não renovação, de assinaturas dos seus leitores e das bibliotecas
institucionais, ou na baixa no número de acessos e de citações computadas na
“Web of Science”.
Isto posto, é bem possível que The Lancet tenha que se
reinventar, para recuperar a credibilidade perdida e, em um futuro distante,
venha a ressurgir, como uma fênix emergindo das cinzas, portando sagradas e
reluzentes lanças.
Não convém mais polemizar tanto no momento, uma vez que,
apesar dos estragos iniciais do malfadado artigo, e das acerbas discussões
subsequentes, com acalorados embates, contaminados por questões ideológicas e
por interesses econômicos subalternos, a validação do teor e dos achados do
estudo em tela, que fulminavam a CLQ/HCQ, está sepultada, mas deveria antes ter
sido cremada, coibindo a possibilidade de ressurreição extemporânea dessa
validez científica.
É oportuno relembrar que CLQ/HCQ, além de baratos, são
medicações de primeira linha contra a malária, endemia que atinge vastas
regiões do mundo, e de comprovada utilidade em outras doenças reumáticas,
estando em uso, com quebra de patentes, há muitos e muitos anos.
Há vários grupos que estão se debruçando nessa questão. Ao
impingir um risco adicional de problemas cardíacos e um excedente de mortes, o
trabalho de Mehra et al. traria um dano irreparável à luta global contra o
paludismo e privaria incontáveis pacientes da reumatologia de ter os benefícios
do uso de CLQ/HCQ.
Por prudência e comedimento, é melhor esperar o desfecho da
metanálise da Cochrane Collaboration,
ora em andamento, sobre o tratamento da Covid -19, para se elucidar se, de
fato, CLQ/HCQ são eficazes e efetivas contra essa virose, ou ainda se há
alternativas de tratamento mais adequadas para debelar a premente pandemia que
hoje assola a humanidade.
* Publicado: Jornal do médico digital,
1(2): 50-2, junho de
2020.
(Revista Médica Independente do Ceará).
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