sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

DOM ALOÍSIO: um homem além do seu tempo


Aloísio, Cardeal Lorscheider

O dia 23 de dezembro é sempre lembrado pela Turma Dr. José Carlos Ribeiro, por marcar a data em que se celebra o aniversário da formatura, ocorrida há trinta anos. Agora, para os companheiros, integrantes da coorte de médicos graduados pela UFC, em dezembro de 1977, esse dia também estará associado à partida de Dom Aloísio ao encontro do Pai.
Ao retornar da missa, na catedral metropolita de Fortaleza, presidida por Dom José Antônio, em reverência ao cardeal, que falecera às 5h20 do domingo (23/12/07), o porteiro do prédio onde resido falou-me, com tristeza, do desaparecimento de Dom Aloísio; no dia seguinte, véspera de Natal, logo ao entrar na Biblioteca do Hospital do Câncer/ICC, fui cumprimentado por uma funcionária administrativa, ao mesmo tempo em que manifestou espontâneo pesar pelo fim da vida terrena do estimado cardeal.
Como as duas pessoas referidas são evangélicas, compreendi que o Pastor que se fora, um defensor ferrenho do ecumenismo, não era querido apenas em seu rebanho, contido nos limites de um redil, mas ele se fizera admirado por cristãos de diferentes denominações, por aqueles de religiões não cristãs, e até mesmo pelos que não professam qualquer religião, embora providos do sentimento de afeição por seus semelhantes; a justificativa para a amplificada e diversificada benquerença tinha o seu fulcro no exemplo dignificante das ações que pautaram toda a sua existência.
O primeiro contato que tive com D. Aloísio foi memorável, mesmo decorridos tantos anos. Aconteceu em 1973, logo depois dele ter assumido o pastoreio da Arquidiocese de Fortaleza; recordo quando um fusca branco parou no cruzamento da Rua Justiniano de Serpa com a Av. Bezerra de Menezes, porque o semáforo fechara. Eu estava na Praça dos Libertadores, no Otávio Bonfim, bem defronte à casa em que nasci. Ao olhar para o veículo, notei que era conduzido por um homenzarrão, que mal o continha, tamanha a sua envergadura. Uma figura pujante e carismática, vestindo uma batina, sobrepunha-se naquele minúsculo quatro-rodas, glória da indústria automobilística alemã dos tempos da II Guerra Mundial: era o nosso arcebispo metropolitano; fitei-o, e ele, com naturalidade, cumprimentou-me com um sorriso e um aceno de mão, gestos demonstrativos de sua afabilidade.
Acompanhei, com admiração, o trabalho pastoral de Dom Aloísio, no Ceará, em prol dos grupos sociais desfavorecidos, e, com certa perplexidade, vi crescer, em âmbito nacional, a sua postura política, quando esteve no comando da CNBB, na defesa intransigente dos direitos humanos e da liberdade do cidadão, enfrentando, com determinação, as forças repressivas que se encastelaram no poder, na vigência do regime militar brasileiro pós-1964.
O preparo intelectual do Cardeal Lorscheider não se cingia aos conhecimentos de teologia e de filosofia, recebidos durante a sua formação religiosa. Transitava com segurança e sólida fundamentação científica, por outros campos dos saberes, sendo capaz de dialogar, debater e escrever, com profundidade, temas intrigantes e assaz complexos, em patamares correspondentes aos doutores e aos ditos especialistas. Apesar de tantas qualificações e de sobejos estudos, guardava, no recôndito d’alma, uma virtude dos verdadeiros sábios: a simplicidade.
No entanto, não tive o privilégio de conviver ou trabalhar com Dom Aloísio, no tempo em que ele foi o guia espiritual do povo cearense, como arcebispo diocesano, de 1973 a 1995, porquanto, nesses vinte e dois anos, estava eu comprometido com outras obrigações acadêmicas e profissionais. Todavia, não fiquei de todo ausente, porque, além da mídia, eu recebia os bons sinais da obra evangelizadora e da ação política do Cardeal Lorscheider, por meio de minha irmã, a jornalista Márcia Gurgel, que frequentemente escrevia matérias sobre ele ou o entrevistava, ou por intermédio de minha mãe, Elda Gurgel, uma ativa participante do Ministério Extraordinário da Eucaristia.
No início de 2004, quando eu estava organizando, junto com Elsie Studart, o livro “Frei Lauro Schwarte e os anos iluminados do Otávio Bonfim”, fui agraciado pela oportunidade de conversar com Dom Aloísio e, na sequência, dele receber um texto, com um expressivo depoimento em resgate do frade que revolucionou os conceitos paroquiais da Igreja de Nossa Senhora das Dores, tornando-se, para a comunidade, um Apóstolo da Juventude do Bairro de Otávio Bonfim.
Em junho de 2004, apresentei ao Conselho Universitário da Uece a proposição do Diploma de Doutor Honoris Causa a Aloísio Cardeal Lorscheider, aprovada unanimemente pelos conselheiros, cuja outorga aconteceu em cerimônia celebrada em janeiro de 2005. Por ter sido eu o proponente da honraria, fui designado pelo Magnífico Reitor, Dr. Jader Onofre de Moraes, para fazer a saudação ao homenageado. Relembro que Dom Aloísio, ao iniciar a sua fala, antes de pronunciar a magistral conferência: “O homem, um ser religioso”, olhou para mim, de forma afetiva, como que agradecido, e dirigiu-se aos presentes dizendo que fora alvo de muitas homenagens em sua vida, mas aquela, em especial, tocava-o imensamente, no imo do coração.
Como desdobramento dessa outorga, pus em marcha um ousado projeto de organizar o livro “Dom Aloísio Lorscheider: doutor honoris causa da Uece”, que foi lançado em novembro de 2005, na presença do retratado, no Seminário da Prainha, com renda destinada às obras sociais da Igreja Católica. A obra ganhou repercussão nos meios eclesiais e na sociedade cearense, como um todo, vindo a ser distribuída, largamente, pela CNBB, em muitas dioceses brasileiras.
Ainda em 2005, sugeri à Fundação Demócrito Rocha a inclusão de Dom Aloísio entre os perfilados da coleção “Terra Bárbara”, sugestão que foi acatada e devolvida com a solicitação de que assumisse o trabalho, o que foi feito em parceria com a Profa. Elsie Studart, que assinou, bem merecidamente, como primeira autora do livro “Dom Aloísio Lorscheider”, reunindo passagens que começavam em 1924 e continuavam até 2006, para alegria dos seus amigos e admiradores, e para honra e glória da Igreja de Cristo, em cujas fileiras o pastor de almas militou, desde 1948, até o seu falecimento.
Na esteira dos acontecimentos que se seguiram à perda de Dom Lorscheider, escrevi um artigo, a pedido do jornal O Povo, cujo fecho revelou a vontade expressa de que as autoridades públicas do Ceará venham ao encontro dos anseios da população, que tanto o admirava e aprendeu a amá-lo, prestando-lhe, postumamente, as honras merecidas, com a aposição de seu nome, em monumentos e logradouros públicos, concorrendo, assim, para a preservação do legado de tão especial filho de Deus.
Ao ensejo da Missa da Ressurreição, por Dom Aloísio, sugeri ao vereador Paulo Mindêllo que apresentasse um projeto de lei municipal, denominando de Avenida Dom Aloísio Lorscheider a chamada Via Expressa; a medida poderia não só perpetuar o seu nome, como, sob as graças desse santo homem, talvez pudesse converter aquela artéria marcada pela violência em uma via de duas mãos: vida e paz.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Integrante da Sociedade Médica São Lucas
* Publicado In: Boletim Informativo da Sociedade Médica São Lucas, 10(78): 3-4, janeiro de 2014.

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