Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Costuma-se comparar a verdade a
um poliedro. Não se pode ver, simultaneamente, todas as suas faces. Da mesma
maneira, é impossível perceber todos os componentes da verdade. De acordo com a
posição tomada pelo observador, ela apresenta um aspecto diverso, para quem o
examina. É uma questão de ângulo. Contudo, se juntarmos todas as percepções,
poderemos alcançar o pleno significado daquilo que está à nossa frente. Eis a
razão da necessidade de termos inúmeros observadores, comentários, opiniões
sobre qualquer assunto e, mesmo assim, ainda é impossível, para os mortais,
tudo abranger.
Diz a lenda que, a verdade, era
um sólido com muitas faces planas e belas, feitas do mais puro cristal
lapidado. Lapidado em mil facetas. E, cada uma delas, refletia uma luz
diferente e esplendorosa. Uma vez por ano, um dos sábios, retirava aquele
cristal de seu invólucro protetor e protegido, para que não sofresse qualquer
arranhão. O reluzente cristal era mostrado, então, em sua perfeição, aos
setenta sábios do Universo.
Certo dia, porém, as mãos do
ancião-mor tremeram e, o Cristal da Verdade, caiu no chão, espatifando-se em
mil pedaços. E, até hoje, todos os sábios ali presentes, tentam apanhar os
cacos do quartzo, mas, não conseguem achá-los; e, muito menos, juntar suas
partes. Por mais que tentem, não conseguem resolver o intrincado quebra-cabeça.
Chamaram, inclusive, as crianças, porém elas não possuíam uma coordenação
motora adequada, para realizar essa tarefa. Sendo assim, com a pequena parte
que cada ancião ficou, afirmaram ser os únicos donos da verdade.
Portanto, nem aos sábios, após
aquela ruptura, é ofertado o poder de enxergar a verdade por inteira. Somente
as crianças (e, isto, quando muito pequenas), e os loucos, é que podem vê-la.
No entanto, ambos representam um perigo para o poder constituído. Caso sejam
realmente loucos, não podemos neles acreditar. E, no caso de serem crianças,
elas são seres inocentes, pouco vividos, e que, também, não podem votar. E, não
podendo votar, não têm poder algum.
A verdade pode ser idealizada,
também, como um simples seixo. Se, visto muito de perto, enxergamos, apenas,
certos detalhes de alguma de suas facetas. E, quando dele nos afastamos, vemos,
somente, certas faces do seu todo. Por conseguinte, sempre haverá uma face que,
para nós, ficará oculta.
Entra ano, sai ano, e os setentas
sábios continuam se digladiando entre si, cada um com o seu fragmento da
verdade, dizendo que aquele é o único válido. Após a quebra da verdade, e
exaustos de tanto tentar juntar as partes da pedra de cristal, cada um voltou
para a província que governavam, pela sabedoria, ou por direitos divinos.
Traziam o seu pedacinho de verdade e, com ele, formaram exércitos para combater
os vizinhos, cujas veracidades eram distintas da sua.
Travaram batalhas enormes! Chegou
a peste, a violência, a incúria, os poderosos, a injustiça, a miséria, a
escravidão, a luxúria. E a fome se espalhou pelo planeta Terra! Todas as
nações, povos, tribos e, até, famílias, lutaram pelo seu naco de verdade,
crentes de que possuíam as verdades verdadeiras! Subversivo era considerado
aquele que, por tal cartilha, não fosse um leitor crédulo e obediente.
O tempo foi passando, as guerras
ficaram cada vez mais mortíferas e, quando estavam prestes a se exaurirem,
depois de causar tamanha carnificina e danos ambientais, em decorrência da
imundícia dos combates sem fim, os anciões decidiram dar um basta final. Seria
devido ao próprio instinto de conservação? Não se pode afirmar com precisão!
Fato é que resolveram, por fim, viver em tranquilidade.
Passado o tormento, chegou à
Terra um disco voador, vindo de uma galáxia distante. Aterrissado numa
planície, ainda chamuscada pelo fogo dos combates, abriram a porta da
espaçonave, desceram, e nada encontraram. À primeira vista, perceberam,
tão-somente, a desolação e alguns arvoredos, renascendo.
- Que
estranho esse planeta Terra, exclamou o astronauta Alfa,
enquanto ajeitava o capacete.
- É
mesmo! Mas, olhe ali uma casa que não desabou, disse o
outro, que atendia pelo nome de Beta.
- Vamos
lá, Alfa, falaram ambos, quase ao mesmo tempo.
E, foram andando, em direção
àquela casa. Ao passar por um prado, eles viram algumas cabras, cuidadas por um
pastor e, ao lado delas, uma onça-pintada, brincando com um cachorro.
Admirados, certamente pensaram: Quem já se viu
onça-pintada ser amiga de cachorro? Vou mandar um relatório para o Chefe!
Chegaram, afinal, à porta do
casebre. Apesar de cansados, pois a força da gravidade exigia muito esforço
deles, empunharam as armas de laser - seu lazer e instrumento de
trabalho – e, com um chute, derrubaram a porta. Mas, qual não foi a surpresa ao
virem homens e mulheres, das mais diversas cores e etnias, fazendo uma
refeição, em perfeita harmonia! Eles pediram que os dois astronautas entrassem
e, os mesmos, ficaram pasmos: pensaram que iam assustar os habitantes daquele
planeta, com suas armas e violências... E, não sabiam como agir.
Os
astronautas indagaram, em seguida:
- Aonde estão vossos soldados, vossos generais, e os
donos do poder?
- Há muito tempo, deles não necessitamos, respondeu um dos presentes.
- E, vocês, não possuem heróis, nem exércitos, nem
paradas militares, perguntou Alfa que me
pareceu mais esperto?
- Para quê tudo isso, se temos nosso pão, nossos
filhos, nossas azeitonas e, depois de comermos e bebermos, vamos todos rezar?
Para quê precisamos de valentões?
- Que planeta mais estranho, será que erramos de
endereço? Exclamaram Alfa e Beta,
admirados! Que
lugar é esse, não é o planeta Terra?
Nisso,
um ancião parou de comer e, inquirindo suavemente os dois estranhos, perguntou:
- O que disseram vocês, caminhantes do espaço?
- Dissemos planeta Terra, retrucou Alfa, bastante mal humorado. Foi,
então, que o ancião respondeu:
- Ah, nós mudamos o nome daqui
para Planeta da Paz. O planeta Terra se foi há muito tempo, quando éramos uns
tolos e guerreávamos por qualquer bobagem!
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco.
Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE)
e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).
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