Completaria 100
primaveras no ano seguinte. Nesse dezembro tive que operá-la durgência, por
obstrução intestinal. Era diabética e hipertensa, controladas. Há quatro meses
a colonoscopia atestara tumor no cólon sigmoide, cuja biópsia revelou
adenocarcinoma, i.e., câncer. Indiquei a operação embora aludindo ao risco
cirúrgico maior pela morbidade (conjunto de causas produtoras de uma doença)
aumentada nessas circunstâncias. Lembrei a ineficácia de tratamentos
alternativos (quimioterapia) na permanência do tumor.
A família
desautorizou a conduta cirúrgica, mesmo contrariando dona Felícia, mais
corajosa e disposta. Perdemos contato por alguns meses. Em uma manhã chuvosa de
sábado, um dos seus 15 filhos me convocou para vê-la, então na Emergência
daquele hospital. Constatei uma ocorrência grave, a exigir solução urgente.
Aberto o abdome, revelou-se massa envolvendo e ocluindo parcialmente o cólon
esquerdo. A competente anestesia pelo dr. José Telles possibilitou uma operação
segura e breve.
Vale lembrar que os
idosos requerem o mesmo cuidado anestésico como as crianças, em relação às
constantes fisiológicas. São os dois pólos da vida, por igual carentes de
especiais atenções clínicas. Sogra de uma amiga de minha mãe, das sessões de
crochê e tricô, tínhamos amiúde boas notícias de dona Felícia, já aos 102
laboriosos anos. Pessoas desavisadas condenam operação nos mais velhos,
ignorando que indivíduos senis, em emergências acutíssimas, estão gravíssimas
para não serem operados, ou dispensados do bisturi.
Assim deve
acontecer na apendicite aguda, nas perfurações de úlceras pépticas
gastro–duodenais ou de diverticulites, como nas complicações iminentes das
infecções intestinais resultando em dilatação aguda (megacólon tóxico) das
colites ulcerativas inespecíficas. Após rápida correção de eventuais
desequilíbrios fisiológicos importantes, estes clientes serão entregues ao
cirurgião, sob pena de morte.
É quando este se
impõe, não apenas por saber operar, mas, sobremaneira, por reconhecer a
necessidade de realizar ou não a operação. Aliás, esta é a palavra correta, e
não “cirurgia”, como dissecamos linguisticamente aqui em 29/2/2012. Os
procedimentos cirúrgicos (como o tricô e o crochê) são trabalhos manuais, mais
ou menos complexos e/ou delicados, aos quais nos habituamos pela prática
repetida, quase sempre igual.
A familiaridade com
a clínica cirúrgica ditará a urgência da intervenção operatória, ou da
abstenção desta, optando-se por medidas incruentes. Tal raciocínio confere
verossimilhança maior à soberania da clínica. Realmente, o bom cirurgião é um
clínico que sabe operar. Detalhamos isto aqui em 16/10/2007, e sempre dessa
arte ensinamos aos futuros cirurgiões da Faculdade de Medicina da UFC.
Dona Felícia, aos
103 anos, queixava-se apenas de “um probleminha de vista”! Fazia sol quando
morreu aos 104, quase quatro após a operação.
(*) Médico. Professor
Emérito da UFC. Ex-presidente e atual secretário geral da Academia Cearense de
Letras.
Fonte: O Povo,
Opinião, de 5/8/2015. p.12.
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