Por Olavo de Carvalho
“Admirar sempre moderadamente é sinal de mediocridade”, ensinava Leibniz. Uma das constantes da mentalidade
nacional é precisamente o temor de admirar, a necessidade de moderar o elogio –
ou entremeá-lo de críticas – para não passar por adulador e idólatra.
Já mencionei esse vício em outros artigos, assinalando que
ele resulta em consagrar a mediocridade como um dever e um mérito – às vezes, a
condição indispensável do prestígio e do respeito.
Mas não é vício isolado. Vêm junto com pelo menos mais dois,
que o prolongam e consolidam:
O primeiro é este: Ao contrário do elogio, a crítica, a
detração e até mesmo a difamação pura e simples não exigem nem admitem limite
algum, nem precisam de justificação: é direito incondicional do cidadão
atribuir ao seu próximo todos os defeitos, pecados e crimes reais ou
imaginários, ou então simplesmente condená-lo ao inferno por lhe faltar alguma
perfeição divina supostamente abundante na pessoa do crítico. Esse vício faz do
efeito Dunning-Kruger (incapacidade de comparar objetivamente os próprios dons
com os alheios) mais que uma endemia, uma obrigação.
O segundo é talvez o mais grave: na mesma medida em que se
depreciam os méritos de quem os tem, exaltam-se até o sétimo céu aqueles de
quem não tem nenhum. O mecanismo é simples: se as altas qualidades excitam a
inveja e o despeito, a mediocridade e a incompetência infundem no observador
uma reconfortante sensação de alívio, a secreta alegria de saber que o elogiado
não é de maneira alguma melhor que ele. A compulsão de enaltecer virtudes
inexistentes torna-se uma modalidade socialmente aprovada de auto-elogio
indireto.
Da pura depreciação de méritos reais passa-se assim à
completa inversão do senso de valores, onde a mais alta virtude consiste
precisamente em não ser melhor que ninguém.
Essa inversão já era bem conhecida desde a “Teoria do
Medalhão” de Machado de Assis e as sátiras de Lima Barreto, mas nas últimas
décadas foi levada às suas últimas conseqüências, na medida em que a esquerda
ascendente, ávida de autoglorificar-se e depreciar tudo o mais, precisava
desesperadamente de heróis, santos e gênios postiços para repovoar o imaginário
popular esvaziado pela “crítica radical de
tudo quanto existe” (expressão de Karl Marx).
A lista de mediocridades laureadas começa nos anos 60 com o
presidente João Goulart, o arcebispo Dom Hélder Câmara, o almirante Cândido
Aragão, o criador das Ligas Camponesas -- Francisco Julião --, o doutrinador
comunista Paulo Freire e toda uma plêiade de coitados, erguidos de improviso à
condição de “heróis do povo” e incapazes de oferecer qualquer resistência ao
golpe militar que os pôs em fuga sem disparar um só tiro.
Nas décadas seguintes, o insignificante cardeal Dom Paulo
Evaristo Arns transfigurou-se num novo S. Francisco de Assis por fazer da Praça
da Sé um abrigo de delinqüentes; o sr. Herbert de Souza, o Betinho, por ter
tido a idéia maliciosa de transformar as instituições de caridade em órgãos
auxiliares da propaganda comunista, foi proposto pela revista Veja, sem
aparente intenção humorística, como candidato à beatificação; e o sr. Lula, sem
ter trabalhado mais de umas poucas semanas, foi elevado ao estatuto de
Trabalhador Arquetípico, preparando sua eleição à Presidência da República e a
pletora de títulos de doutor honoris causa que consagraram o seu orgulhoso
analfabetismo como um modelo superior de ciência.
Nesse ínterim, é claro, a produção de obras literárias
significativas reduziu-se a zero, milhares de indivíduos incapazes de conjugar
um verbo tornaram-se professores catedráticos, as citações de trabalhos
científicos brasileiros na bibliografia internacional foram se reduzindo até
desaparecer, o número de analfabetos funcionais entre os estudantes
universitários subiu a quase cinqüenta por cento e os alunos das nossas escolas
secundárias começaram a tirar sistematicamente os últimos lugares nos testes
internacionais, abaixo de seus colegas da Zâmbia e do Paraguai – resultado que
um ministro da Educação achou até reconfortante, pois, segundo ele, “poderia
ter sido pior” (até hoje ninguém sabe o que ele quis dizer com isso).
A devastação geral da inteligência lesou até alguns cérebros
que poderiam ter dado exemplos de imunidade à estupidez crescente. Nos anos que
se seguiram ao golpe de 1964, os partidos comunistas conseguiram cooptar, sob o
pretexto de “luta pela democracia”, vários intelectuais até então cristãos e
conservadores, que, travados pelo senso das conveniências imediatas, foram
então perdendo seus talentos até chegar à quase completa esterilidade. Desse
período em diante, Otto Maria Carpeaux nada mais escreveu que se comparasse à
História da Literatura Ocidental (1947) ou aos ensaios de A Cinza do Purgatório
(1942) e Origens e Fins (1943); Ariano Suassuna nunca mais repetiu os tours de force do Auto da Compadecida
(1955) e de A Pena e a Lei (1959), Alceu Amoroso Lima deixou de ser o filósofo
de O Existencialismo e Outros Mitos do Nosso Tempo (1951) e de Meditações sobre
o Mundo Interior (1953), para tornar-se poster
man da esquerda e garoto-propaganda do ridículo Hélder Câmara.
Nada disso foi coincidência. A total subordinação da cultura
superior aos interesses do Partido é objetivo explícito e declarado da
estratégia de Antonio Gramsci, um sagüi intelectual que se tornou, entre os
anos 60 e 90 do século passado, o guru máximo das consciências e o autor mais
citado em teses acadêmicas no Brasil.
Comparados aos feitos da esquerda no campo da educação e da
cultura, o Mensalão, o dinheiro na cueca e a roubalheira na Petrobrás
recobrem-se até de uma aura de santidade.
Publicado no Diário do Comércio, 27 de agosto de 2014.
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