sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Para não dizer que não falei das eleições



Por Paulo Elpídio de Menezes Neto (*)
Seria natural e até desejável que me devesse ocupar, nestas anotações incômodas, da realidade circunstante de uma eleição da qual participamos há três dias. Decidi-me, entretanto, por fugir de comentar o feito consumado, e afastar, não sem íntima resistência, o impulso que nos leva a envolver-nos, a nós pessoas e cidadãos, com a disputa e a aritmética dos números que antecipam e coonestam audaciosas, por vezes patrióticas, pretensões políticas. Outros, mais avisados do que eu, hão de ocupar-se da matéria e o farão com domínio de autoridade.
Voltaire, lembra Savater em ensaio vigoroso sobre fanatismo e fanáticos, acreditava que os abusos e disparates das leis são, de fato, males reais que provêm de causas compreensíveis: do interesse abusivo dos poderosos e da ignorância das massas, acalentadas pelos inventores de superstições e ideologias… Abuso praticado por quem tem o poder; e submissão pela ignorância de quem imagina ingenuamente poder influenciar os agentes do poder…
Esqueçamos por breve momento os embates municipais (o poder “local” é mais sedutor do que o poder distante?), e deixemo-nos levar por esta prosa heterodoxa, irrelevante. Puxo o fio esgarçado da prática acreditada como racional da contraposição de ideias e argumentos. Este é hábito sutil que faz dos homens (e das mulheres) seres pretensamente lógicos e racionais. Recorrendo aos avatares da biopolítica, é possível vislumbrar, na economia das ideias, a intervenção de fatores convergentes e complementares. Um deles, a ocorrência da “partenogênese”, quando as ideias se desenvolvem na cabeça das pessoas sem fertilização externa. É uma forma de geração de dogmas e convicções em processo autônomo capaz de transformar as criaturas pensantes em hermafroditas intelectuais, dotadas da capacidade de conceberem suas próprias certezas; ou, se assim parecer ao leitor mais arguto, por laborioso onanismo de resultados, engenharia aliciadora e solitária de masturbação de percepções autoconsensuais. Outra vertente está no redemoinho semântico da significação das palavras e de sua transformação. No universo da política, as palavras sofrem, com frequência, mudanças de conteúdo, ganham acepções ambíguas e terminam por favorecer a troca de sinais das falas e dos discursos. Parece comum entre atores políticos, estejam eles nos portais do poder ou afogados no desencanto da oposição, a fuga intencional dos papéis que deveriam representar no cumprimento de seus mandatos e atribuições. Não se há de remover esses entraves perversos da vida política brasileira com reformas de emergência, extraídas de consensos e dissensos formais, travados em casas legislativas a cujos integrantes faltam o peso da consciência política de sua investidura e a percepção clara do sentido real da representação e do mandato que exercem. Esses valores da cidadania são atributos do povo, cultivados nas democracias, despertados pela educação e encorajados por um forte sentimento de solidariedade. Resultam, como predicava Etienne de La Boétie, de dois princípios fundadores: a representação e o mandato, associados à liberdade e à equidade.
(*) Cientista político. Membro da Academia Brasileira de Educação e do Instituto do Ceará.
Fonte: O Povo, 6/10/16. Opinião, p.18.

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