Se a professora de Filosofia que anda tendo visões vivesse numa pequena paróquia do século passado, não escaparia da excomunhão nem do manicômio.
Muitos anos antes da estreia do
destrambelhado sexto sentido de Marilena Chauí, Taquaritinga se alvoroçava de
tempos em tempos com a notícia que se espalhava feito rastilho pela cidade de
10 mil habitantes: alguém tivera uma visão. Em agosto de 1958, por exemplo,
fiquei sabendo num começo da tarde que uma mulher que morava na Vila Sargi
acabara de ver Nossa Senhora refletida numa lata de alumínio esquecida no
quintal da casa de chão batido. Cavalgando a Monark com freio no pé que herdara
de um dos meus irmãos, cheguei em cinco minutos ao cenário da aparição e consegui
infiltrar-me na terceira fileira, espremido entre uma moça de sombrinha e um
homem de bigode e chapéu. Era tudo verdade, confirmou a troca de
impressões entre os dois.
O homem se disse impressionado com o
intenso azul do olhar da santa. A moça observou que o azul do manto era um
pouco mais escuro. Achei que seria falta de educação declarar que não estava
vendo coisa alguma além do alumínio castigado pelo sol, e já estava pronto para
enxergar um terceiro tom de azul quando o padre Lourenço Cavallini estacionou
ruidosamente seu Fusca verde-limão a um metro da calçada, desceu do carro sem
tirar a chave da ignição e abriu uma picada no meio da multidão com safanões e
cotoveladas.
Ao divisar o alvo que perseguia, o
impetuoso pastor do rebanho municipal acelerou o ritmo das passadas e, mesmo
com os movimentos dificultados pela batina preta, mandou para o espaço com um
tremendo bico de esquerda a lata de alumínio com Nossa Senhora e tudo. O que
parecia um último chute era um pontapé inicial — a senha para o ato seguinte do
espetáculo da santa cólera. A lata ainda voava quando ecoou a ordem baixada
pela temida voz de tenor: “Vão trabalhar, seus vagabundos!”, berrou o padre
Cavallini.
Não me senti afrontado: eu tinha 8 anos
e nessa idade ninguém trabalhava. Mas a plateia que se ia dispersando
vagarosamente aumentou a velocidade da retirada, que virou correria com o
prosseguimento das chicotadas verbais. O próximo cretino que tentasse
aproveitar-se de figuras sagradas seria sumariamente excomungado, avisou a maior
autoridade religiosa da paróquia. E sem direito a queixar-se ao bispo, muito
menos apresentar recursos à Santa Sé, porque um padre não tem tempo a perder
nem paciência a desperdiçar com vigarices de ateus, maçons, espíritas ou
carolas imbecis.
É verdade que, passado o susto, os
paroquianos que tinham visões continuaram a tê-las, mas ficaram mais
cautelosos. Só relatavam o acontecido a parentes próximos e amigos de infância,
que juravam manter a história longe dos ouvidos do padre Cavallini. Depois que
deixei a cidade onde nasci, não soube de nenhum episódio semelhante ao que
testemunhei naquela tarde — até ser confrontado, há 12 anos, com o primeiro dos
surtos paranormais protagonizados por Marilena Chauí.
A estreia desse sexto sentido de quinta
categoria ocorreu em 2004, no dia em que a professora de Filosofia da USP saiu
de uma audiência com o presidente da República como se estivesse saindo de uma
crônica de Nelson Rodrigues: varada de luz feito santo de vitral, comunicou aos
jornalistas que zanzavam pelas imediações do Palácio do Planalto que, “quando
Lula fala, o mundo se ilumina”.
Como apenas Marilena Chauí viu a
garganta do deus do PT gerando mais energia que mil Itaipus, e como a solitária
espectadora do fenômeno se dispensou de descrições mais precisas, tornou-se
impossível confrontar o que viu a professora com os assombros que se
materializam no mundo real sempre que Lula desanda numa discurseira. Os plurais
saem em desabalada carreira, a gramática se refugia na embaixada portuguesa, a
ortografia se asila em velhos dicionários, a regência verbal se esconde no
sótão da escola abandonada, o raciocínio lógico providencia um copo de
estricnina sem gelo, a razão pede a proteção da ONU para livrar-se de outra
sessão de tortura.
No segundo surto, Marilena Chauí foi
menos sovina com os interessados nos detalhes do que tinha visto. Como atesta o
vídeo, ela revelou publicamente que, da mesma forma que Dilma Rousseff vê um
cachorro oculto atrás de toda criança, vira escondido em cada brasileiro da classe
média um traidor da nação, um inimigo da pátria ou coisa pior. “Eu odeio a
classe média”, decolou a pensadora do PT. “A classe média é o atraso de vida. A
classe média é estupidez. É o que tem de reacionário, conservador, ignorante,
petulante, arrogante, terrorista. A classe média é uma abominação política,
porque ela é fascista, uma abominação ética, porque ela é violenta, e ela é uma
abominação cognitiva, porque ela é ignorante”.
A terceira manifestação,
reproduzida no vídeo abaixo, informa que o caso de Marilena saiu do terreno da
galhofa para adentrar o pátio do manicômio. A mulher que tem visões agora
enxerga na operação que desmontou o maior esquema corrupto de todos os tempos
uma trama internacional destinada a roubar riquezas armazenadas nas profundezas
do mar do Brasil. “A Lava Jato não tem nada a ver com a moralização da
Petrobras”, delirou Marilena há poucos dias. “É pra tirar de nós o pré-sal”.
Na visão da filósofa de terreiro, o
juiz Sérgio Moro é um agente do imperialismo ianque e das seis maiores
multinacionais petrolíferas, as “Seis Irmãs”. Depois de alguns anos de cursos e
treinamentos no FBI (Marilena aparentemente ignora por que a velha CIA ficou
fora dessa), Moro voltou ao Brasil preparado para engaiolar bravos guerreiros
do povo brasileiro, atribuir crimes inexistentes a um Lula incorruptível,
obrigar empreiteiros, diretores da Petrobras e figurões da política a
confessarem delinquências que jamais cometeram, delatar amigos inocentes ou
devolver propinas que nunca embolsaram e, com tudo isso e muito mais,
precipitar a queda de Dilma Rousseff.
Se tivesse tais visões numa pequena
paróquia do século passado, Marilena não escaparia da excomunhão por
charlatanice decretada por um padre Cavallini, seguida de pedagógicas
temporadas no hospício mais próximo. Como vive num mundinho infestado de
fanáticos, daqui a alguns anos a companheira paranormal talvez esteja
empoleirada em púlpitos pintados de vermelho, contando as coisas que anda vendo
a bandos de devotos da seita lulopetista.
Admita-se: vista de perto, Marilena
Chauí tem tudo para fazer bonito no papel de animadora de missa negra.
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