sábado, 18 de novembro de 2017

ANOS (IN)ENFESTADOS


Em 2003, algum tempo após as celebrações do Jubileu de Prata da Turma José Carlos Ribeiro, acontecidas em dezembro de 2002, dei uma carona ao patrono de nossa turma, o Prof. Geraldo Gonçalves, da Reitoria da UFC até sua residência, quando travamos o diálogo seguinte:
– Você precisa rezar para que eu viva mais cinco anos – rogou-me o querido professor.
– O senhor está nas minhas intenções, dentre aqueles amigos a quem peço ao Pai para que vivam muitos anos entre nós – eu retruquei – mas por que cinco anos?
– É porque eu gostaria de vê-lo ingressar em nossa Academia de Medicina.
– Não entendo porque esperar mais cinco anos, se já integralizei os vinte e cinco anos de formatura exigidos para admissão na Academia Cearense de Medicina.
– É porque mudamos, recentemente, o nosso estatuto, passando de vinte e cinco para trinta anos o tempo mínimo de formado em Medicina, como requisito para ingresso na ACM.
– Qual foi a razão para essa mudança, Prof. Geraldo?
– Bem! Nós achamos que, atualmente, com vinte e cinco anos de graduado, os médicos encontram-se, em geral, no pico da atividade profissional, muito ocupados em ganhar o pão, para sustentar à família ainda em formação, e, por isso, não dispõem de tempo para a Academia.
– É uma pena para mim, porque, há anos, cultivava a possibilidade de ingressar na ACM, tão logo quanto possível. Mas não será por esse motivo que rogarei a Deus que lhe dê mais cinco de anos de existência terrena.
– Você sabe qual é a minha idade, Marcelo?
– Sei que o senhor ingressou nos oitenta, há dois anos – respondi-lhe prontamente.
– Na verdade, eu prefiro dizer que tenho quarenta e um anos enfestados. Você sabe o que são anos enfestados? – indagou-me ele, ao perceber que não teria entendido o significado daquela expressão.
Com efeito, como sanitarista, imaginei que talvez o meu interlocutor tivesse querido usar uma parônima, fazendo lembrar, com essa expressão, a derivada da acepção Infestação, que, na terminologia própria da Epidemiologia, pode ser entendida como o alojamento, desenvolvimento e reprodução de artrópodes na superfície do corpo ou nas roupas de pessoas ou animais. Procurando intuir alguma associação com o processo infeccioso, na chamada relação agente-hospedeiro, não encontrei a devida guarida, e daí, pronunciei, laconicamente:
– Não!
– Como não?
– Confesso que não afinei para o que sejam anos enfestados, da forma como o senhor colocou.
– Mas você sabe o que é um tecido enfestado, Marcelo? – perguntou-me, como se desejasse me explicar, aos poucos.
Na hora matei a charada, ao recordar do tempo em que era comum encomendar a feitura de roupas às costureiras de bairro, quando os armazéns e lojas de tecidos ofereciam peças de tecido cuja medição era duplicada, porquanto vinham dobradas ao meio. Prontamente, lhe disse:
– Sei, sim! A medida do tecido era em dobro.
– Pois é, Marcelo. Cada ano vale dois. Dizendo desse modo, pareço mais novo, não é?
Pensei, comigo mesmo, que, usando desse recurso, a diferença entre a minha idade e a dele, beirava os dezesseis anos enfestados, muito pequena, por sinal, em termos paradoxais, considerando à jovialidade de espírito do professor Geraldo Gonçalves.
Fonte: SILVA, M.G.C. da. Anos (in)enfestados. In: SOBRAMES – CEARÁ. À flor da pele. Fortaleza: Sobrames-CE/Expressão, 2017. 384p. p.231-2.
* Publicado, originalmente, In: SILVA, M.G.C. da. Contando Causos: de médicos e de mestres. Fortaleza: Expressão, 2011.112p. p.24-5.

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