Por André
Haguette (*)
O título
deste artigo alude a um livro de Norbert Elias, A sociedade dos indivíduos.
Nele, Elias argumenta que a sociedade não existe fora dos indivíduos; ela é as
relações que os indivíduos estabelecem entre si. “A sociedade, com sua
regularidade, não é externa aos indivíduos; tampouco é simplesmente um “objeto”
“oposto” ao indivíduo; ela é aquilo que todo indivíduo quer dizer quando diz
“nós”. Não há, portanto, sociedade aí fora, somente há indivíduos em relação
que criam maneiras de agir, pensar e ser solidificadas em cultura, valores,
instituições, interesses, classes, isto é, em regularidades, estruturas,
ordens, que, uma vez criadas, passam a pesar sobre seus criadores. Os
indivíduos vivem amarrados a teias de significados que eles mesmos teceram e
tecem continuamente. Teias de significados, como também teias de interesses
materiais e de poder; os indivíduos são, logo, ao mesmo tempo, estruturantes e
estruturados.
Essas
são algumas reflexões sociológicas que me vieram à mente com a greve dos
caminhoneiros e das grandes transportadoras. O evento é considerável, ainda
mais num ambiente cultural que teima em celebrar o indivíduo, sua liberdade e
felicidade, sem se referir ao coletivo, às forças que os unem e dominam. As
grandes narrativas ou teorias totalizantes foram relegadas a um tempo revoluto,
tempo arcaico, dizem; o que importaria hoje, na pós-modernidade, seria mapear,
traçar os roteiros e territórios, construir as narrativas dos desejos e
significados que os indivíduos, particularmente aqueles diferenciados ou
minoritários como mulheres, gays, travestis, negros, indígenas etc., dão a suas
ações. O que importaria são os significados individuais, as falas, as
interpretações, as definições de realidade de cada um.
A
paralisação dos caminheiros veio reafirmar brutalmente que, entre as
regularidades criadas nas relações que os indivíduos estabelecem entre si, umas
exercem maior domínio, maior peso, maior constrangimento. São as regularidades
que surgem da produção e reprodução de suas vidas e que, de modo rápido,
podemos sintetizar em três principais: capital/trabalho, governo/sociedade
civil e produtor/consumidor, embora essa última seja uma das faces da relação
assimétrica basilar capital/trabalho. Esses três pares de regularidades formam
a base, a essências de nossa (de)ordem social, seu sistema nervoso, o locus de nossos principais problemas,
conflitos e possíveis soluções e os eixos estruturais contraditórios que
subjugam todas as individualidades e orientam o seu curso. Afirmar que vivemos
num tempo de fragmentação, diferenças, individualidades, tempo de relações
fluídas, não passa de meia verdade. Se existem redes de minipoderes e
conflitos, as fontes de amplos conflitos continuam vinculadas às estruturas de
produção e poder; à possessão e distribuição do poder, da renda e da riqueza;
em suma, às classes sociais. As grandes problemáticas sociológicas continuam
sendo: quem governa e quem acumula bens materiais e/ou espirituais? A exaltação
dos individualismos nada pode contribuir para a solução desses conflitos. A
questão levantada pela recente paralisação é uma só: quem tem poder suficiente
para ficar com seu dinheiro.
(*) Sociólogo e professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Publicado In: O Povo, Opinião, de 4/6/18. p.21.
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