quarta-feira, 13 de junho de 2018

A SOCIEDADE DOS INDIVIDUALISMOS


Por André Haguette (*)
O título deste artigo alude a um livro de Norbert Elias, A sociedade dos indivíduos. Nele, Elias argumenta que a sociedade não existe fora dos indivíduos; ela é as relações que os indivíduos estabelecem entre si. “A sociedade, com sua regularidade, não é externa aos indivíduos; tampouco é simplesmente um “objeto” “oposto” ao indivíduo; ela é aquilo que todo indivíduo quer dizer quando diz “nós”. Não há, portanto, sociedade aí fora, somente há indivíduos em relação que criam maneiras de agir, pensar e ser solidificadas em cultura, valores, instituições, interesses, classes, isto é, em regularidades, estruturas, ordens, que, uma vez criadas, passam a pesar sobre seus criadores. Os indivíduos vivem amarrados a teias de significados que eles mesmos teceram e tecem continuamente. Teias de significados, como também teias de interesses materiais e de poder; os indivíduos são, logo, ao mesmo tempo, estruturantes e estruturados.
Essas são algumas reflexões sociológicas que me vieram à mente com a greve dos caminhoneiros e das grandes transportadoras. O evento é considerável, ainda mais num ambiente cultural que teima em celebrar o indivíduo, sua liberdade e felicidade, sem se referir ao coletivo, às forças que os unem e dominam. As grandes narrativas ou teorias totalizantes foram relegadas a um tempo revoluto, tempo arcaico, dizem; o que importaria hoje, na pós-modernidade, seria mapear, traçar os roteiros e territórios, construir as narrativas dos desejos e significados que os indivíduos, particularmente aqueles diferenciados ou minoritários como mulheres, gays, travestis, negros, indígenas etc., dão a suas ações. O que importaria são os significados individuais, as falas, as interpretações, as definições de realidade de cada um.
A paralisação dos caminheiros veio reafirmar brutalmente que, entre as regularidades criadas nas relações que os indivíduos estabelecem entre si, umas exercem maior domínio, maior peso, maior constrangimento. São as regularidades que surgem da produção e reprodução de suas vidas e que, de modo rápido, podemos sintetizar em três principais: capital/trabalho, governo/sociedade civil e produtor/consumidor, embora essa última seja uma das faces da relação assimétrica basilar capital/trabalho. Esses três pares de regularidades formam a base, a essências de nossa (de)ordem social, seu sistema nervoso, o locus de nossos principais problemas, conflitos e possíveis soluções e os eixos estruturais contraditórios que subjugam todas as individualidades e orientam o seu curso. Afirmar que vivemos num tempo de fragmentação, diferenças, individualidades, tempo de relações fluídas, não passa de meia verdade. Se existem redes de minipoderes e conflitos, as fontes de amplos conflitos continuam vinculadas às estruturas de produção e poder; à possessão e distribuição do poder, da renda e da riqueza; em suma, às classes sociais. As grandes problemáticas sociológicas continuam sendo: quem governa e quem acumula bens materiais e/ou espirituais? A exaltação dos individualismos nada pode contribuir para a solução desses conflitos. A questão levantada pela recente paralisação é uma só: quem tem poder suficiente para ficar com seu dinheiro.
(*) Sociólogo e professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Publicado In: O Povo, Opinião, de 4/6/18. p.21.

Nenhum comentário:

 

Free Blog Counter
Poker Blog