domingo, 12 de dezembro de 2021

Causo Médico: CRIANÇA SEM FÍGADO

A Dra. Francisca do Carmo (nome fictício), preceptora da Residência Médica de um hospital infantil, conduzia a visita de enfermaria para discussão de casos clínicos, com os residentes e internos do hospital.

Diante de uma criança, com suspeita de ser acometida de calazar, pairava a dúvida quanto à presença ou não de fígado palpável ao exame físico.

Por primeiro, os internos examinaram o abdome da criança, começando pelo acadêmico responsável direto pelo cuidado daquele menino, a quem coube resumir a anamnese do caso:

– Eu já examinei minuciosamente esse garoto e percebi que ele tem fígado palpável a dois dedos transversos abaixo do rebordo costal direito (RCD), o que reforça o diagnóstico inicial de calazar.

Outros três estudantes, sob a supervisão docente, repetiram o mesmo exame e externaram as suas opiniões:

– Eu detectei fígado palpável a dois centímetros do RCD – disse um, confirmando o achado do primeiro colega.

– Não constatei nada palpável na região do hipocôndrio direito – afirmou outro, discordando do resultado dos dois primeiros examinadores.

– Não verifiquei nada que pudesse falar a favor de hepatomegalia – anunciou o último deles, ratificando o achado do seu colega antecedente.

A Dra. Francisca do Carmo pediu, então, a Dra. Cláudia Abreu (nome fictício), médica-residente R1 daquela unidade e responsável pelo leito, para que detalhasse os resultados do exame físico contidos no prontuário do paciente.

Depois do esmiuçado relato, a Dra. Francisca do Carmo perguntou, de chofre, à Dra. Cláudia:

– Na sua opinião, como é que é: essa criança tem ou não fígado palpável?

– Na minha avaliação, eu acho que tem – respondeu a Dra. Cláudia Abreu.

– Não vale “eu acho”: quero uma resposta precisa, em definitivo – exigiu a médica preceptora.

– Eu estou convencida de que possui – concluiu a R1.

Como a Dra. Francisca do Carmo pressentira um certo vacilo ou a pouca convicção da R1, considerou oportuno requerer que as duas outras médicas, a R2 e a R3, mais experientes, também examinassem o menino e emitissem o diagnóstico clínico.

Ambas, após meticuloso exame, chegaram a uma conclusão diferente da apontada pela R1: não havia fígado!

A palavra final competiu à médica preceptora, que, depois de exame performático, dado o caráter didático da visita de enfermaria, pontificou:

– Em definitivo, meus caros residentes e internos, esse garoto não tem fígado!

Ditas essas palavras de modo tão imperativo, ecoou na enfermaria o soluço da aflita mãe do garoto, que a tudo assistia, com o natural desvelo materno:

– O meu filho vai morrer! Tadinho dele! Tão novo – balbuciava enquanto as lágrimas vertiam de sua face.

– Quem foi que falou aqui que ele ia morrer, mãe? – O seu filho vai ficar bom e a senhora vai levá-lo para casa brevemente – explanou a Dra. Francisca do Carmo.

– Mas como é que ele vai ficar bom se a senhora mesma disse que ele não tinha fígado.

Só a custa de muitas explicações a mãe foi convencida de que tudo não passara de um mal-entendido.

Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Da Sobrames/CE

Extraído de: SILVA, Marcelo Gurgel Carlos da. Medicina, meu humor! Contando causos médicos. Fortaleza: Edição do Autor, 2012. 120p. p.17-18.

* Republicado In: Causos médicos: médica velha. Informativo AMC (Associação Médica Cearense). Novembro de 2021 - Edição n.08, p.11 (em pdf).

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