Por Izabel Gurgel (*)
O único retrato do meu pai jovem tem a beleza de nascença que nele
vibrou até a morte. Um moço tão à vontade no paletó com gravata quanto no olhar
melancólico que vai bem em quase todas as artes, pode doer de mansinho uma vida
inteira e não deixar rastro em qualquer suporte material. Dilaceração que se
realiza no silêncio, entre lonjuras e lentidão. Ele tem entre dezoito e vinte e
poucos anos. Os anos variavam no relato que se repetia sobre a feitura do
retrato: a Fortaleza, no começo da década de 1940, já distante daquela que se
aformoseara na virada dos anos de 1800, 1900, mas talvez ainda não anunciava o
que Caetano tão bem diz cantando: parece construção, mas já é ruina.
O fotógrafo, cinco anos mais velho, é o mesmo que daria à cidade um
de seus retratos mais comovedores, o das rotinas de vidas invisíveis em um
Mucuripe em preto & branco, tão solar, tão real, que só sendo ficção. Comovedor,
com as alegrias do cotidiano de meninos e meninas, homens e mulheres à beira do
mar, com tempos que o tempo devorou. Seus "mesmos tristes" ecoando
nos nossos, como na música de Tom Jobim. Ô, Seu Chico Albuquerque, receba
nossos agradecimentos. O Mucuripe se realiza na gente, quando evocado pela
memória, com a poesia da coletânea de fotos que o senhor fez. Revejo agora, em
livro, foto sua de uma labirinteira, fazendo a renda bordada ou o bordado
rendado de nome labirinto.
Um pedaço da vívida, vivida geografia de Fortaleza refulge no papel
sensibilizado pela luz com a qual Seu Chico inscreveu paisagens na gente, fez
retratos. O retrato de Rosalvo Gurgel Oliveira é uma escola, uma escolha.
Talvez não sejamos mais do que uma tentativa de existir em um brevíssimo espaço
de tempo. Por isso, para isso, a nós humanos o ofício e a bendição de urdir
ficções. Como homens ao mar, pescando. Mulheres fazendo renda, a sustentar
cotidianos. Fisgar a vida. Deixar-se fisgar.
Jorge Luis Borges, escritor argentino com rosto moldado para o
retrato, um certo ar de haver sido tocado pelo eterno, ele dizia que, ao
morrer, morre com a criatura uma série de circunstâncias. Aquele rosto jamais
se realizará outra vez. Cito e me perco na vastidão que seu dito abre para
contar do mapa escrito|inscrito na pele. Do que se tornou o rosto, um rosto. E
jamais se realiza outra vez do mesmo modo. Talvez seja a fonte de onde jorram
os retratos.
Ao longo da história da humanidade, sabemos, o retrato é uma série
de práticas distintas abrigadas sob o mesmo nome.
Amanhã, primeiro de maio, é um dia bom para um retrato do Mestre
Tarcísio. Faz-se Renovação na casa-sede do Reisado São Miguel, em Juazeiro do
Norte. Ano após ano, renova-se a tradição inventada de colocar nos lares o
Sagrado Coração. Tarcísio Mendes da Silva faz do modo bonito que inventou de
viver: na rua, brincando. Antes da reza, e já é reza, a banda cabaçal São
Bento. Depois, o guerreiro N. Sra. Aparecida. Bendita seja sua oração ao tempo.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 30/04/23. Vida & Arte, p.2.
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