Certa vez ouvi de um residente médico:
"Lutamos tanto para salvar a garota. Ela tinha tanto para
viver, imagine, 15 anos de idade. Ela voltou duas vezes da parada [cardiorrespiratória].
Nesses momentos ela sorria, conversava com a gente, perguntava pelos pais.
Depois ela ‘apagou’ de vez, foi a óbito. Senti uma terrível sensação de vazio e ao mesmo tempo uma culpa estranha de que
poderia ter feito mais alguma coisa."
Situações
como essas parecem se repetir constantemente na vida de profissionais de saúde,
principalmente se forem médicos ou enfermeiras. Lidar com perdas sempre é muito
difícil. Imagine se elas acontecerem muitas vezes em pouco espaço de tempo.
Isso nos
ajuda a entender em parte porque parece ficar cada vez mais presente a
percepção de muitos pacientes ao afirmarem que médicos e enfermeiras são
profissionais "frios", "distantes". As vezes essas falas
podem ser traduzidas por outras: "ele não me olha nos olhos", "ela
não conversa direito comigo".
O que muitos
não sabem é que essa "frieza" esconderia histórias trágicas de perda
e dor. Sem suporte emocional adequado, a maioria dos profissionais acaba
criando uma "armadura" de distanciamento, afinal, para que
vincular-me a uma pessoa que sei que posso perder a qualquer momento? Daí que
os relacionamentos correm o risco de se tornar objetais, principalmente nos
espaços hospitalares onde a morte acontece com mais frequência.
Óbvio dizer
que as alternativas existem e estão mais ou menos postas. O problema é
percebe-las e coloca-las em prática. Sinteticamente: como não se tornar frio e
distante sem correr o risco de amplificar a dor e o sofrimento? Uma empatia
radical faria com que o profissional se autodestruísse. Uma objetivação extrema
interfere no bom tônus do cuidar além de ser um elemento definidor de menores
possibilidades de cura e/ou qualidade de vida aos paciente. Por exemplo,
pesquisas mostram recorrentemente que médicos mais atenciosos são fundamentais
para boa adesão a tratamentos. Imagine então se pensarmos em oncologia onde as
intervenções podem causar sintomatologias muito desagradáveis. Aqui, como em
outros casos, boa adesão determina maiores possibilidades de cura e/ou
sobrevida com qualidade.
A dicotomia
entre "indiferença" e empatia radical pode ser superada se os profissionais
perceberem com clareza que eles também precisam ser cuidados. Boas condições de
trabalho não implicam apenas em ambientes salubres, boas condições de repouso
nos plantões, boas relações interpessoais etc. Significa também que meus
problemas físicos e mentais não são "propriedade individual" mas
devem sofrer processos de intervenção no trabalho porque, em parte, o trabalho
ajuda a configurá-los.
E junto a
estes processos de intervenção existe a necessidade de questionar a forma como
elaboramos nossa própria mortalidade. Se gradualmente nos prepararmos para
lidar com nossa morte, ficamos mais fortalecidos para lidar com a naturalidade
de perder o que amamos e respeitamos, até porque o risco da perda não está
implicado apenas aos nossos pacientes, mas também a todo universo de pessoas
que amamos mais intensamente.
Viver
significa, entre tantas possibilidades, preparar-se cada vez mais para lidar
com perdas e frustrações. Quando nos julgamos protegidos pelas muralhas do
castelo, perdemos de vista o frescor dos rios, o ar puro do campo e o encanto
sedutor da outra parte da cidade que circunda as muralhas. Carpe Diem.
(*) Psicólogo.
Professor da Universidade Estadual do Ceará. Diretor da Editora da Uece.
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