Por Roberto
Vieira *
Sete
horas da manhã. Segunda-feira. O médico rendeu seu colega e foi informado que
restaram duas cirurgias do plantão noturno. Não havia sala disponível durante a
madrugada. O médico segue pelo corredor a procura da maca onde se encontram os
dois pacientes aguardando tratamento. No caminho o odor de sangue, fezes e
vômitos não incomodam ninguém. 'Ou nos adaptamos ou somos uma espécie extinta',
pensa o cirurgião. O corredor está repleto. Mulheres e homens se misturam entre
gemidos e preces. No hospital não existe lugar para meio termo: 'Ou nos
tornamos religiosos ou ateus'. 'O soro acabou', diz um paciente. 'Eu quero
saber do meu filho', murmura uma senhora que sofreu um acidente de carro. Um
idoso morre sentado numa cadeira de rodas. Oito horas. No programa de rádio, o
governo anuncia a construção de um novo hospital na região metropolitana. Um
maqueiro se cala enquanto carrega uma mulher para o Raio-X. O técnico do Raio-X
explica que a máquina está quebrada. O ortopedista tenta identificar a fratura
pela palpação. Impossível. Alguém informa que vão ligar para a chefia. Uma
ambulância pode levar a paciente para fazer o exame em outra unidade. O senhor
permanece morto na cadeira de rodas. Nove horas. As duas cirurgias correm bem,
mas as tesouras não cortam. Outra cirurgia aguarda, pois a lavanderia não
consegue suprir a demanda. Ainda não trocaram a roupa de cama do quarto dos
médicos nem dos pacientes. Desde quinta-feira. Alguns carregam os lençóis de
casa. A clínica do plantão trouxe medicação de casa para distribuir entre os
pacientes. Ela está sozinha com outro colega para atender mais de cinquenta
pessoas e ainda correr para dar parecer nos boxes. Os boxes são o purgatório. O
paciente saiu dos corredores e agora divide um cubículo de dois metros
quadrados com outro doente. Quem sabe ele consiga o céu da enfermaria. Onze
horas. Calor e ar condicionado quebrado. O mau cheiro aumenta. Dois dias sem
ver o filho. Uma batida de caminhão conduz mais sete pacientes para a unidade
de trauma. Dois chegam mortos. Uma hora. Almoço. Pedras no feijão. Algumas
baratas passeiam pelo refeitório. As bandejas com o almoço são distribuídas nos
corredores. Dieta hipossódica. Dieta pastosa. Dieta zero. Em observação. Dois
acadêmicos perguntam aos anestesistas sobre a profissão. Mas como responder com
tristeza para quem ainda sonha? E os médicos mais antigos respondem que a
medicina é um sacerdócio. Nada é tão importante quanto curar alguém. Na parede
um crucifixo assiste o buco-maxilo ser chamado à pediatria: Um pai espancou uma
criança que fraturou vários ossos da face. O oftalmologista vai junto e
constata que antes de espancar a criança o pai queimou seus olhos com ponta de
um cigarro. Bebida e ciúme. A enfermagem reclama que cada ano está pior que o
anterior. Hoje a Restauração atende 'até dor de cabeça'. Cinco horas, um
cirurgião toma um tranquilizante. Melhor tomar dois. No livro de plantão Mais
de quatrocentos atendimentos, cinco óbitos, doze cirurgias, dezenove milagres e
nenhum sorriso. Noite. Ao sair para dormir depois de quarenta e oito horas nas
ruas o médico pensa em tomar um banho, mas lembra que o banheiro dos médicos
está quebrado. As muriçocas democraticamente iniciam o seu banquete diário. O
médico caminha para o carro na noite quente do Recife. Na rampa do hospital
chegam duas ambulâncias. As luzes da Restauração brilham na Agamenon Magalhães.
O médico deseja esquecer todo o horror e a miséria que presenciou e ao chegar
em casa inicia a rotina de botar a roupa do plantão para escaldar e lavar o
corpo inúmeras vezes até diminuir o odor nauseante que domina o seu corpo.
Melancolicamente, recordando sua desesperança e a dos pacientes, refaz a mesma pergunta
do escritor Primo Levi ao ser libertado de Auschwitz:
"Pode um
ser humano, sobreviver ao fato de ter sobrevivido à Restauração?
* Nota do autor
(médico do Hospital da Restauração no Recife-PE): Escrevi esse texto em 2007 sobre um dia de trabalho no
Hospital da Restauração em Recife. Os anos se passaram... E a saúde brasileira
conseguiu piorar. Tortura não ocorre apenas nos presídios. A tortura brasileira
acontece diariamente em todos os lugares. Nos hospitais, nas escolas, nas ruas. Cada centavo roubado na corrupção é um grito
de dor na realidade dos cidadãos deste país...
E essa tortura nunca é lembrada!
Fonte: Internet (circulando por e-mail
e i-phones), com autoria atribuída a Roberto Vieira.
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