A milhar do guaxinim
Lugarejo
humilde e os amigos inventaram um jogo do bicho dos moldes do tradicional, com
certas particularidades. Objetivo: combater a ociosidade e permitir que toda
semana um sujeito lá enricasse com o bolão apurado. Só dava direito a um
ganhador; em caso de empate (duas ou mais pules vencedoras), o prêmio ia pro
felizardo mais bonito, com mais filhos na igreja e torcesse pelo time local
campeão do ano anterior.
No
jogo convencional, de Avestruz à Vaca. No jogo do povo do São Romão do Cacimbão
Verde, da Ariranha à Tijubina. 49 bichos, entre eles o Mangangá (grupo 7), Peba
(14), Lagartixa (21), Cobra de Duas Cabeças (28), Grauçá (31), Guaxinim (39),
Mambira (41), Piririguá (45)... Importante: a única semelhança com o
tradicional era a dezena do cachorro, do grupo 5. Motivo: “Terra sem cachorro,
humanidade latindo”.
Pois
bem. Quinca de seu Gonçalo jogou no milhar do Guaxinim e acertou na cabeça.
Total a receber: 232 reais e 45 centavos, já descontadas as coisas. Suficiente
pra encher a despensa de feijão. Ocorre que, por descuido do apostador, o gato
de casa (Estopa) urinou na pule deixada sobre a preguiçosa da sala, borrando as
escritas. Não bastasse, o pai de chiqueiro que criavam viu a porta do terreiro
aberta, adentrou e comeu o papel premiado - a mulher de Quinca ainda tentou
impedir com um pau, mas...
Sai
o resultado, o homem é o ganhador. Mas, que quede a poule? Quinca se apressa em
reclamar dos responsáveis que o número sorteado do dia era o dele. Ou melhor: a
milhar do Guaxinim – 1599. Só ele de ganhador. Para prová-lo, levou a mulher,
os meninos, o gato mijão e o bode comedor da pule. Tudo que pudesse confirmar
Quinca o sortudo. Como todos se conheciam – e aquela era terra de homens
sérios, os argumentos foram acatados. E ele já sai da banca do jogo do bicho
com a ruma de dinheiro no bolso.
Ocorre
que Quinca Júnior (o primogênito) achou de melar a alegria geral. O número
jogado pelo pai, em verdade, era 1598: milhar que o velho Quinca amarrava há
meses. 15, a idade do rapaz; 99, ano do seu nascimento. Voltam todos à banca
para “desreclamar” o prêmio, devolver a grana. Pela força da sinceridade
externada, a diretoria decide manter o prêmio de Quinca, com a sugestão:
-
Um churrasquim de bode tem seu valor! Pra criar marra!
Hora de ir pra casa em casa
Festança
começou às 20 horas, povo numa animação medonha. Era a comemoração dos 40 anos
dos donos da casa: Deca e Amélia. Só para os mais íntimos do casal. Cervejinha,
uísque, petiscos diversos; por volta da meia noite, o jantar com os parabéns.
Clima tão fraterno e contagiante que Deca liberou-se para merecidas libações a
mais do costumeiro. E haja discurso. Que Deca e Amélia eram isso, que Amélia e
Deca eram aquilo.
Histórias
engraçadas envolvendo o par anfitrião. Cada amigo um com seu causo. Dibebê e
dicumê no rodo. Deca se ri das contações. Só se levanta para ir ao banheiro
escorrer o cipó, e vai nas últimas, pra não perder um minuto de boa prosa.
Amélia, a companheira de quatro décadas, sempre ao lado, ajudando o marido nas
boas lembranças de uma vida em comum tão exemplar.
O
tempo voou, o relógio de parede da sala bate uma hora da madrugada. Ao ouvir o
toque, confirmando-o pelo Rolex de pulso, Deca, bem meladim, dá um pulo da
poltrona e grita, tropeçando nas palavras:
-
Bora, bora, bora pra casa, Amélia! A conversa tá muito boa, mas já é tarde!
Valeu, negada, chau!!!
Amélia,
sempre muito paciente...
-
Deca, meu amor, nós estamos em casa!
Fonte: O POVO, de 29/4/2021. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.
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