Por Izabel Gurgel (*)
Conta-se a idade da cerâmica em milênios. A formação do solo, na
casa de milhões. Maria do Socorro Nascimento, a Côrrinha, guarda em si imensas
experiências de tempo. Ela percebe e trabalha com a variação do que para a
maioria de nós é o barro do chão, a argila, as areias, em condensações só
perceptíveis para quem, feito Côrrinha, dança junto aos materiais, com eles vai
se constituindo. Conhece-lhes as propriedades, vislumbra feitos, com eles
materializa utensílios. Ela tem olaria junto à casa onde mora, no sítio Baixa
do Quaresma, em Missão Velha.
No sul do Ceará, é um dos seis municípios que abraçam o GeoPark
Araripe. Côrrinha vive nas vizinhanças dos geossítios Cachoeira de Missão Velha
e Floresta Petrificada do Cariri. Na passagem da matéria-prima à cerâmica, o
corpo todo de Côrrinha está implicado no ofício que aprendeu com Sebastiana
Amaro dos Santos, de família de larga trajetória de oleiros, os Amaro, do sítio
Passagem de Pedra.
A boca do forno tem a sombra do tempo em forma de fogo. Ali,
Côrrinha cozinha pote, rosário, cascata de sinos. Já cozinhou onça. Depois,
estampou pintas na pele e pelos no focinho. Nas áreas da fornalha, o pé de
urucum se espalha em fartura de folha, flor, fruto. A lição encarnada do
colorau a nos lembrar do trabalho da imaginação, do corpo inteirinho implicado
na vida-ateliê que é transformar isso naquilo para existir. A insistência da
vida em perdurar. Só possível de mutação em mutação, feito a caatinga esperando
chuva para tornar-se aquilo que ela é.
Raimunda Ana da Silva também guarda saberes sentidos (d)e práticas
ancestrais. Dona Dinha vem de uma família dedicada a fiar e a tecer, artes que
mulheres e homens tornaram possível laborando na biblioteca das árvores, das
águas, descobrindo e catalogando fibras vegetais, inventando ferramentas,
mirabolando traquitanas para o trabalho.
Como a Terra em movimento, é uma dança também a do corpo-tear de
Dona Dinha. Corpo desenhista, compositor, orquestrando madeiras e fios. É com o
próprio corpo, é no corpo, que Dona Dinha faz a instalação funcionar para tecer
redes de fina geometria. Tão bonito e complexo o fazer quanto o feito.
Partitura bonita a de Côrrinha fazendo cerâmica, a de Dona Dinha fazendo rede.
Casas-ateliês da região, como as de Dona Dinha e Côrrinha, fazem
parte de uma rede de museus orgânicos, de casas que são museus. É uma
iniciativa da Fundação Casa Grande, com sede em Nova Olinda, cidade onde Dona
Dinha mora. Casas, criaturas, viventes de tantos tipos, grupos, núcleos
familiares e suas sabedorias inventadas que dizem das fertilidades da Terra, e
daquelas terras.
Guardar, uso sempre no sentido do poema homônimo de Antônio Cícero.
Côrrinha e Dinha guardam feito o poeta, usando.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 11/06/23. Vida & Arte, p.2.
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