Segurança viária para motociclistas ainda
está longe do ideal na Capital, apesar dos avanços recentes na política de
mobilidade urbana
Por Luciano Cesário (*)
Quem
trafega em motocicletas nas vias públicas de Fortaleza tem 12 vezes mais
chances de morrer no trânsito do que um motorista de automóvel. O grau de risco
tem como base dados divulgados pela Autarquia Municipal de Trânsito (AMC) que
apontam as motos associadas a quase metade dos óbitos por acidentes viários
registrados em 2022 na Capital.
De
acordo com as estatísticas, dos 157 óbitos registrados entre janeiro e
dezembro, 49% envolviam pilotos ou passageiros de veículos motorizados de duas
rodas, o que corresponde a praticamente cinco em cada dez sinistros fatais. Nos
veículos automotores, o percentual foi de 4%. Em números absolutos, foram 76
vítimas de acidentes com motocicletas contra seis em ocorrências de veículos
automotores.
Os
números seguem uma tendência histórica. Desde 2014, os condutores de
motocicletas são maioria entre as mortes decorrentes de acidentes de trânsito
em Fortaleza. Durante este período, a proporção de sinistros fatais com
motociclistas foi até dez vezes maior em relação aos motoristas de carros. Em
2017, por exemplo, foram 130 mortes de motociclistas e 13 de motoristas ao
volante.
A
desproporcionalidade evidencia que a segurança viária de quem trafega sobre
duas rodas no trânsito da quinta maior cidade do Brasil ainda está longe do
ideal, apesar do alto investimento em mobilidade urbana feito pela Prefeitura
na última década.
Desde
2013, as autoridades apostam em políticas de expansão do transporte público e
no incentivo ao uso da bicicleta como estratégias centrais para otimizar o
espaço coletivo e reduzir o número de acidentes.
Nos
últimos dez anos, os corredores exclusivos para ônibus aumentaram de 4,11 km
para 132,8 km, segundo informou a AMC. A medida serve para desafogar o fluxo de
veículos nas artérias mais movimentadas, principalmente nos horários de pico,
aumentando a velocidade média dos coletivos e dando maior fluidez ao trânsito.
Simultaneamente,
a malha cicloviária cresceu mais de 500%. Em 2013, Fortaleza contava com 68 km
de ciclofaixas ou ciclovias. Atualmente, segundo o órgão municipal de trânsito,
são 419,2 km. Somente nos últimos dois anos a Capital ganhou cerca de 71,2 km
de espaço exclusivo para circulação de bicicletas, expansão recorde para o
período.
As
ações surtiram efeito. Em dez anos, o patamar de acidentes de trânsito caiu
57%, passando de 369 ocorrências em 2012 para 157 em 2022. Desde 2014, as
quedas nas estatísticas são consecutivas. O índice de mortes por 100 mil
habitantes também foi reduzido de 14,8 para 6 no mesmo período.
Apesar
dos avanços, o gerente de educação para o trânsito da AMC, André Luís
Barcellos, afirma que a segurança viária dos motociclistas ainda é um “grande
desafio" no trânsito da Capital.
Ele
sublinha que a alta proporção de acidentes de motos em relação aos veículos
automotores não é uma equação fácil de se explicar. “Isso se deve a uma série
de fatores, mas principalmente porque é um usuário mais exposto e a moto é um
veículo mais vulnerável diante de um carro e de um caminhão, por exemplo”.
Em
Fortaleza, segundo o Departamento Estadual de Trânsito (Detran), existem 358
mil motocicletas em circulação. É a maior frota entre as nove capitais do
Nordeste. O número de motos é pouco mais da metade dos cerca de 632 mil
automóveis registrados.
Para
prevenir conflitos viários entre os veículos de duas e quatro rodas, Fortaleza
tem investido nas faixas de retenção, também conhecidas como “motobox”, um tipo
de sinalização horizontal que dá prioridade aos motociclistas na abertura do
sinal. “Temos quase 200 áreas com essas faixas atualmente. Como a moto fica à
frente dos carros, a chance de colisão reduz drasticamente”, frisa o gerente da
AMC.
Segundo
Barcellos, entre as infrações mais recorrentes cometidas pelos condutores de
motos estão transitar nas ciclofaixas, avançar sinal vermelho, realizar
conversões irregulares e não utilizar capacete. Todas elas, comenta o gerente,
são determinantes para a alta proporção de acidentes.
Mirando
nessas irregularidades, o órgão de trânsito tem intensificado blitze exclusivas
para motociclistas. Nas fiscalizações, os agentes observam os equipamentos
obrigatórios, o sistema de iluminação e o estado dos pneus dos veículos, além
de checar o uso adequado do capacete e exigir a habilitação dos condutores.
Custo do
tratamento a acidentados de motos cresce quase R$ 10 milhões
Tragédia
pessoal para as vítimas, os acidentes de trânsito com motociclistas custam caro
aos cofres públicos. Em dez anos, o gasto médio do Sistema Único de Saúde (SUS)
para atender pacientes acidentados em veículos de duas rodas no Ceará cresceu
mais de 150%. O montante passou de R$ 5,6 milhões em 2012 para R$ 14,1 milhões
em 2022.
Os
dados constam no Sistema de Informações Hospitalares, do Ministério da Saúde, e
foram fornecidos ao O POVO pela Secretaria da Saúde do Ceará
(Sesa). São números referentes àqueles pacientes que estiveram em leitos
públicos de internação (enfermaria ou UTI) antes do falecimento.
O
recorde de despesas no decênio foi registrado em 2021, com R$ 14,2 milhões
aplicados no tratamento dos enfermos. No total, mais de R$ 118 milhões saíram
do orçamento público nas três esferas para pagar despesas hospitalares de
motociclistas envolvidos em sinistros de trânsito. O valor corresponde a 62% do
total investido nas internações das vítimas de todas as categorias veiculares
(R$ 178,4 milhões) durante o período.
Mesmo
com o alto investimento, pessoas acidentadas em motos têm mais chances de
morrer ou desenvolver sequelas físicas que as incapacitam para o trabalho e
atividades quotidianas. É o que afirma o cirurgião vascular e pesquisador da
área de segurança viária, Lineu Jucá, autor de um estudo abrangente sobre as
causas e consequências dos acidentes de motos no Ceará.
Realizada
entre 2011 e 2012, a pesquisa acompanhou o tratamento de 604 pacientes ao longo
de 13 meses no IJF, hospital de referência para atendimento de vítimas com
fraturas múltiplas. Com base nos resultados da observação, o médico aponta que
acidentes com motocicletas são 27,5% mais graves do que os automobilísticos e
matam até 7 vezes mais em relação aos sinistros com veículos de quatro rodas.
Segundo
Jucá, a alta incidência de acidentes com motocicletas reflete uma combinação de
três agravantes: falta de fiscalização, condutores inabilitados e ingestão de
bebidas alcoólicas. “A moto chegou e ficou. Não tem como você ir contra essa
realidade, mas por ela ser mais vulnerável, a atenção deveria ser maior e o que
a gente vê é justamente o contrário”, disse o médico em entrevista ao O
POVO.
Na
pesquisa que conduziu, ele disse ter identificado uma correlação “muito forte”
entre os acidentes de motos e as bebidas alcoólicas. “42% dos pacientes
relataram ter consumido álcool antes do acidente. E o que mais chama a atenção
é que 62% dos sinistros ocorreram entre sexta-feira e domingo, o período em que
as pessoas mais bebem”, pontuou.
Aliado
à ingestão de álcool, cerca de 55% dos hospitalizados admitiram que não tinham
habilitação para conduzir motos, segundo detalhou o médico. “Se nós temos
motociclistas inabilitados e alcoolizados circulando pelas ruas, o que falta é
fiscalização”, sublinhou Jucá, que também é membro da Academia Cearense de
Medicina (ACM).
Além
de maior controle sobre o tráfego, o médico sugere mudanças na legislação. Para
ele, o acesso à habilitação deveria ser mais rigoroso e em níveis diferenciados
a partir das cilindradas das motos. Citando o exemplo de Medellin, capital da
Colômbia, também propõe que os capacetes sejam identificados com a mesma
numeração da placa das motocicletas para multar condutores que não utilizam o
item de proteção.
A
aposta na prevenção, na visão do especialista, é o caminho mais promissor para
reduzir os acidentes e evitar sequelas permanentes para os sobreviventes. Entre
os pacientes acompanhados pela pesquisa, 64% tiveram lesões nos membros
inferiores e 36% nos superiores.
Álcool e
imprudência: O caminho das vítimas desviado para o hospital
Nas
enfermarias do Instituto Doutor José Frota (IJF), em Fortaleza, muitas
histórias se cruzam pelo mesmo caminho. Os jovens Felipe Almeida, 18, e Marcelo
Mendes, 20, ambos do interior do Ceará, ilustram essa realidade. Os dois foram
parar nos leitos do hospital pelo mesmo motivo: acidente com motocicletas.
As
razões também são idênticas. No dia dos sinistros, eles trafegavam sem
capacete, voltavam de festas para casa e tinham ingerido bebidas alcoólicas. A
consequência também foi a mesma: traumatismo craniano. Socorridos em estado
grave, os dois passaram por cirurgias de emergência.
Felipe,
que mora em Itapipoca, no Litoral Oeste do Estado, deu entrada na unidade no
dia 7 de abril, no feriado da Sexta-Feira Santa, após colidir frontalmente a
moto que pilotava com outra motocicleta, na CE 402, que liga Itapipoca a
Amontada. Ele estava na companhia de uma amiga, que teve apenas ferimentos
leves.
Já o
condutor, que não tinha habilitação, sofreu um forte impacto na cabeça. O
paciente foi submetido a uma cranioectomia descompressiva e teve parte da
calota craniana cortada e colocada no lado esquerdo da parede abdominal.
Ainda
com lapsos de memória, em decorrência da cirurgia, o jovem diz não recordar
detalhes do acidente, mas reflete que tudo poderia ter sido evitado. “Acho que
não dei muita atenção por conta da bebida”, admite Felipe, cujo pai, o
agricultor José Cleumir, o acompanha no hospital desde o início da internação.
“Se
ele estivesse andando de capacete, não teria dado essa pancada grande na
cabeça. Mesmo assim, a gente tem que agradecer a Deus. Ele morreu e nasceu de
novo, o médico foi quem me disse isso”, contou Cleumir, que aguarda a liberação
de uma nova cirurgia para o filho, a cranioplastia, procedimento para a
reconstrução do crânio.
Internado
numa enfermaria do mesmo andar, Marcelo, que mora em Quixadá, no Sertão
Central, sofreu acidente exatamente um mês após Felipe, no dia 7 de maio, após
perder o controle da motocicleta que pilotava, na CE 265.
“Acho que
as cervejas que bebi deram sono, e era de madrugada, estava muito frio, aí o
juízo da pessoa fica mais lento”, relembra ele ao falar sobre as causas do
sinistro.
Também
submetido a uma cirurgia no crânio, no dia 14 passado, ele se recupera do
trauma com a esperança de voltar para casa o mais breve possível. “A coisa que
mais quero é receber alta e poder voltar com minha vida normal. Nunca mais vou
andar sem capacete ou tendo bebido”, afirmou o paciente.
De
acordo com o superintendente adjunto do IJF, Fernando Façanha, os motociclistas
são a grande maioria nos atendimentos motivados por acidentes de trânsito. No
primeiro quadrimestre deste ano, foram cerca de 2,9 mil internações, ou 71% do
total (4,1 mil).
“A
maioria dos pacientes está na idade produtiva, são jovens. Eles eventualmente
usam a moto como meio de transporte para trabalhar, mas também como meio de
lazer, o que envolve a ingestão de álcool e acaba resultando nos acidentes”,
explicou Façanha.
O
superintendente destaca que o número de atendimentos está em crescimento há
dois anos. De 2020 para 2021, passou de 8,4 mil para 9 mil, alta de 7,1%. Em
2022, chegou a 9,4 mil, aumento de 4,4% em relação ao ano anterior.
A
maior parte dos pacientes, segundo o médico, vem de municípios do Interior. “A
rede estadual não está capacitada para atender esses casos mais complexos”. O
aumento na demanda, segundo Façanha, tem pressionado a capacidade de
atendimento do hospital.
“Estamos
realizando reuniões com a Secretaria da Saúde do Estado (Sesa) para pedir que
parte desses pacientes sejam absorvidos pelos hospitais regionais para
descentralizar mais essa demanda”, completa. Dos pacientes atendidos entre
janeiro e abril deste ano no IJF, 55% são do Interior e 45% da Capital.
Menos velocidade, mais vida:
Fortaleza amplia controle sobre trânsito para reduzir acidentes
Na
esteira da campanha nacional Maio Amarelo, cujo objetivo é conscientizar
motoristas e pedestres sobre os cuidados no trânsito, a Prefeitura de Fortaleza
anunciou que vai expandir a redução dos limites de velocidade para mais dez
avenidas.
Os
trechos serão readequados de 60 km/h para 50 km/h. Desde 2018, quando a medida
começou a ser implantada, 50 vias da Capital passaram a operar sob esse padrão.
No começo de maio, as avenidas Dom Manuel e Aguanambi, entre os bairros Centro,
Joaquim Távora e Fátima, também tiveram os limites reduzidos
Até o
fim do mês, a readequação também será realizada nas avenidas Treze de Maio, no
Benfica, e na Porto Velho, entre o Henrique Jorge e o João XXIII. Nos próximos
três meses, mais seis vias terão velocidade reduzida, segundo informou André
Luís Barcellos, da AMC, que classifica a medida como estratégica e eficaz para
a redução dos acidentes de trânsito na Capital.
“Quando
você reduz a velocidade, você melhora o tempo de reação e a pessoa passa a ter
uma visão mais ampla do seu redor. Sem contar que é um elemento que diminui o
grau de severidade de acidente”. Segundo o gerente, nas vias com a velocidade
reduzida, as chances de sobrevivência aumentam dez vezes em caso de sinistros.
A
redução é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que aponta a
velocidade excessiva como causa de uma em cada três mortes por acidentes de
trânsito em todo o mundo.
De
acordo com a AMC, houve redução de acidentes e mortes em todas as avenidas de
Fortaleza onde a política foi implantada. A primeira a receber a redução foi a
avenida Leste-Oeste, que corta cinco bairros da Capital, em 2018.
A via,
que era considerada uma das mais perigosas da cidade, principalmente para
usuários vulneráveis como pedestres e ciclistas, encerrou 2022 sem registrar
nenhuma morte no trânsito. Entre 2010 e 2017, foram 11 óbitos.
De
acordo com Barcellos, os locais que passam pela readequação não são escolhidos
aleatoriamente. “Primeiro, a gente estuda a via, melhora a sinalização, aumenta
as áreas de travessia para pedestres, faz algumas intervenções nas calçadas,
melhora a iluminação e depois de tudo isso é que a sinalização de velocidade é
trocada”.
Após a
troca dos limites, os motoristas têm até seis meses para se adequar à nova
regra. A atuação por excesso de velocidade está prevista após esse período da
adaptação.
(*) Jornalista de O Povo, luciano.cesario@opovo,com.br
Fonte: Publicado In: O Povo, de 26/05/23. Reportagem. Cidades, p.4-5.
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