Na primeira metade do século XX, quando se
dispunham de poucas faculdades no Ceará, era fato comum os jovens cearenses,
pertencentes a famílias de maior poder aquisitivo, emigrarem para outros
estados a fim de cursarem Medicina.
Logo após a II Grande Guerra, toma corpo em
Fortaleza um movimento, com vistas à criação de uma escola médica no Ceará,
cuja empreitada viria a vingar em 1948. Um dos fatores que contribuíram para isso
foi a pressão da sociedade local, máxime das classes mais altas, para que os
médicos se formassem aqui mesmo, pois já batia um cansaço de perder garbosos
jovens, rapazes citadinos, para as cariocas, baianas, pernambucanas etc., com
as quais contraíam núpcias, deixando as cearenses no mais autêntico “ora vejam
só o que aconteceu”.
Se já engatado um namoro ou um noivado, aqui
na capital cearense, diante da dificuldade de manter ativos os contatos com os
familiares, do alto custo das passagens e da demora no percurso, o reencontro
se limitava aos períodos das férias, normalmente as do final de ano, que eram
mais longas, uma vez que, nas de julho, boa parte do período era consumida no
deslocamento. Com o avançar do curso e à medida que se aproximava a formatura,
os acadêmicos, já preocupados com o futuro exercício profissional, engajavam-se
em estágios nos serviços hospitalares, como Pronto Socorro e Santa Casa, para
adquirir a prática necessária, e assim terem mais segurança para o momento em
que viessem a assumir o trabalho médico. De um modo geral, os retornos ao Ceará
rareavam, substituídos por cartas com as devidas desculpas pela ausência. E,
quase sempre, eram as moças casadoiras que ficavam no prejuízo.
A distância da família, a vida em repúblicas
ou em pensões e a própria idade, na plena efervescência juvenil, deixavam os
estudantes carentes e ansiosos por contatos femininos. Não era difícil que,
nesse ambiente, prosperassem oportunidades para a iniciação ou intensificação
sexual com mulheres, inapropriadamente, ditas de vida fácil. Quando não, o
“flirt” era só o começo de um relacionamento mais estreito com “moças de
família”, em idade de casar e em condições de oferecer as benesses de um
casamento vantajoso. Como, amiúde, os rapazes eram de “boa família”, e,
portadores, em breve, de um diploma de médico, o que conferia elevado status social ao seu detentor, era até
natural que fossem assediados pelas jovens desejosas de ter um bom partido,
firmando um contrato matrimonial que garantisse uma existência confortável.
Alguns dos nossos emigrados, movidos pelos
atrativos da cidade grande, que os acolhera por seis anos, criaram vínculos,
sociais, afetivos e/ou laborais, sendo ali retidos. A grande maioria, no
entanto, por sorte, voltava às suas raízes, regressando ao torrão natal;
contudo, por um suposto azar, parte deles retornava ostentando uma aliança de
noivado, refletindo um compromisso nupcial; alguns até chegavam casados, e nem
sempre com uma mulher que caía nos agrados de sua família, a exemplo de certas
baianas, com uma tez mais impregnada de melanina, numa época em que os
preconceitos raciais vicejavam visivelmente na Terra da Luz, apesar de ser
pioneira da abolição escravagista no Brasil.
O compromisso nupcial dos médicos
recém-chegados causava um certo transtorno social, frustrando expectativas
matrimoniais, desfalcando a prata da casa e também deixando no caritó, muitas moçoilas
na flor da idade. Era, talvez, como países em conflagração, cuja força viril
foi deslocada para os campos de batalha, num distante “front”, despojando as
mulheres de seus cobertores auriculados.
Não é à toa, que a aprovação da instalação
da Faculdade de Medicina do Ceará, em 1948, foi comemorada, em notícia de
jornal, como algo alentador, no sentido de assegurar bons partidos para as
moças “casadoiras” do nosso estado, ameaçadas pelo estigma de se tornarem
“vitalinas” e nunca mais saírem do caritó.
Marcelo Gurgel
Carlos da Silva
Da Sobrames/CE e da Academia Cearense de Médicos
Escritores
Fonte:
SILVA, Marcelo Gurgel Carlos da. Medicina,
meu humor! Contando causos médicos. 2.ed. Fortaleza: Edição do Autor, 2022.
144p. p.38-40.
* Republicado In: SILVA, M.G.C. da. AMC. Causo médico:
tirando as cearenses do caritó. Informativo AMC (Associação Médica Cearense). Novembro de 2022 -
Edição n.16, p.24(online).
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