quinta-feira, 4 de abril de 2024

MEDO DO LIVRO

Por Saraiva Junior (*)

Ao me aposentar, voltei a residir na velha casa onde nasci, na cidade de Senador Pompeu. Há duas escolas próximas à casa, em cuja calçada transitam muitos estudantes. Na mudança, levei todos os meus livros. Instalei a biblioteca em algumas estantes na sala de estar e no corredor. Logo percebi que aquela simples biblioteca despertou a curiosidade dos passantes. Em conversa com vizinhos, estudantes e professores, expliquei que os livros estavam à disposição para serem emprestados.

Confesso que recebi poucas visitas. A casa que havia sido dos meus avós costumava passar a maior parte do tempo fechada. Os batentes na sua fachada tornaram-se ponto de encontro dos alunos antes e depois das aulas. Mesmo após a minha chegada na casa, tendo aberto porta e janelas, esses jovens não se intimidaram e seguiram com a algazarra, o bate-boca e as palavras de insulto entre eles.

A situação era um incômodo para minha companheira e eu, que costumávamos tirar um cochilo após o almoço. Creio que os moradores idosos das casas vizinhas sofriam com o barulho, pois também tinham o hábito da sesta. Vez por outra, eu me dirigia aos jovens e pedia que baixassem o volume. Bastava eu dar as costas para a gritaria retornar com mais força.

Certa feita, em pleno sol do meio dia, cheguei em casa e encontrei a mesma galera na maior balbúrdia na calçada. Por acaso, estava com o livro de contos do conterrâneo Moreira Campos, "Dizem que os cães veem coisas", embaixo do braço. Aproximei-me deles e mostrei o livro, anunciando que se tratava de um presente para ser compartilhado por toda a turma. Mencionei a importância do autor e sugeri que cada um lesse um conto para me relatar no dia seguinte, assim poderíamos conversar bem mais.

Adivinhem qual foi a minha surpresa? Eles abandonaram definitivamente a calçada. Minha companheira observou que muitos começaram a passar pelo outro lado da rua. Claramente fui sendo evitado por eles, antes tão efusivos. Na vizinhança, ouvi diversas vezes comentários que associavam a loucura ao gosto pela leitura. Até quando, neste país, ainda reinará o medo do livro?

(*) Escritor e ex-conselheiro do Conselho de Leitores de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 2/03/24. Opinião. p.16.

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