quarta-feira, 14 de abril de 2021

GERAÇÃO COVID

Por Ana Miranda (*)

Usam máscaras de pano, desde pequenos, o mundo lhes parece mais distante, os sons que suas bocas emitem saem abafados. Falam pouco, leem fragmentos, esquecem palavras. Ficam mais em silêncio. Não podem ouvir muito claramente, não veem o rosto das pessoas, apenas os olhos e os cabelos. Os óculos embaçam. Mas eles têm voz.

Não podem estar com amigos, brincar na pracinha, jogar no campinho, na poeira, na areia, na lama, não vão ao cinema nem ao circo, não podem ter gente por perto e sentem receio das pessoas. Acabaram-se festas de aniversário, passeios, soltar pipa, ônibus escolares. Não podem visitar os avós, e quando os visitam, não podem abraçá-los nem beijá-los. Aprendem que os toques contaminam, precisam lavar as mãos constantemente. É o novo normal, dizem.

Não podem ir à escola, precisam estudar e aprender pelo celular que é uma extensão do corpo. Uns ligam o celular para receber os pontos, mas saem de perto. Há menos atividades. Os professores são imagens de luz e som, voláteis, quase não existem. Crianças pobres ficam de fora das escolas, sem comer a merenda. A fome é fulminante. Uns seguem favorecidos pela sorte, têm afeto, amor em suas vidas, alimento à mesa, computador ou laptop, professores particulares. Crianças ficam sozinhas em casa, os pais saem para trabalhar e podem não voltar. Outras convivem com pais que eram ausentes e agora trabalham em casa que é também escritório e empresa. Todos são manipulados por algoritmos. Recebem fartos dados pela internet. O universo é digital.

Perdem cedo a infância. Sentem-se responsáveis pelo mundo. Conhecem a violência, ouvem ameaças. Sabem que o desemprego ronda, têm a preocupação de adultos, sentem a força do furacão social que o isolamento traz. A rua é perigosa, a casa é uma bolha. Uns não têm casa, ou todos se amontoam num quarto. Sabem o que se passa no mundo, ouvem números de pessoas que morreram, parentes falecem isolados. Médicos, enfermeiros são super-heróis. A morte é uma senhora que mora ao lado. Crescem, amadurecem depressa demais.

Encontram amizade por aplicativos. Têm a sensação de que da noite para o dia tudo pode mudar. Há uma desmaterialização da vida, não há mais o corpo, há menos relações de amor. São vigiados pelos pais, e criam menos identidades para si. Vivem num mundo sem privacidade, a intimidade é cada vez mais invadida. Difícil distinguir realidade e fantasia. Fazem conexões entre doenças e destruição climática, entre vírus e natureza maltratada. A sustentabilidade é uma macrotendência, porém a sociedade ficou mais individualista. O mundo é ao mesmo tempo pequeno e imenso.

Vivem num ambiente hostil, inseguro, têm ansiedade ou medo. São mais criativos, porém mais conservadores. Recebem o diploma em cerimônias virtuais, não sabem se tem valor. Uns sentem raiva, querem atirar, outros se fecham para o mundo, tomam pavor de retornar ao convívio. Uns não conseguem trabalho, pegam a primeira oportunidade, seja qual for. Ainda não se sabe quais os frutos deste tempo, a Geração Covid está sendo observada. Esperamos que aprenda a solidariedade e que não perca o dom de sonhar.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 26/02/21. Vida & Arte, p.2.


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