Sob o título Ricardo III, o drama do sanguinolento desse monarca
inglês, nascido em 1452 e morto em 1485, escrito entre 1592 e 1593 e publicado
em 1597, foi uma das primeiras obras teatrais de William Shakespeare, e, até
hoje, se mantém como uma de suas mais populares e admiradas peças. É fascinante
tanto pela síntese histórica da intrigante dinastia Plantageneta, que reinou na
Inglaterra por mais de trezentos anos, como igualmente pela urdidura de um
protagonista marcante por sua vilania, soberba e psicopatia, aliás,
identificável com facilidade nos tempos presentes.
Quando Ricardo nasceu, estava em curso na Inglaterra A Guerra das
Duas Rosas, um confronto de trinta anos (1455-1485) que opôs as duas casas da
dinastia Plantageneta, os York (cujo símbolo era a rosa branca) e os Lancaster
(a rosa vermelha), em disputa pelo trono inglês. A vitória dos York elevou
Eduardo IV ao trono, tendo ao lado seus dois irmãos, George, o fiel duque de
Clarence, e Ricardo, o invejoso e corcunda Duque de Gloucester.
Ricardo, manchado pelo escárnio e motivado pela ambição
desenfreada, inicia seu diabólico plano pelo trono, provocando o assassinato do
irmão George, falsamente acusado de conspiração contra o rei. A partir daí,
Ricardo persegue todos da linha sucessória do rei Eduardo IV, que está
fatalmente doente, incluindo a rainha Elizabeth e seus dois filhos pequenos.
Para chegar à coroa após a morte de seu irmão, em 1483, aprisionou os dois
herdeiros e os declarou ilegítimos, usurpando o trono. Os garotos nunca mais
foram vistos.
Feito rei, Ricardo vê-se envolto em sangue e atado em suas próprias
maquinações persecutórias, e uma maldição de seus fantasmas prevê seu fim
trágico. Apenas dois anos depois de assumir, enfraquecido politicamente,
Ricardo foi morto numa luta contra o exército de Henrique Tudor, que também
reivindicava o poder pelos Lancaster. Foi o último monarca britânico a morrer
em batalha, em 1485, aos 32 anos.
Seu corpo foi encontrado, em 2012, em um estacionamento construído
sobre o convento onde ele havia sido enterrado e sua ossada revelava marcas de
golpes produzidos por diferentes armas medievais
Na peça de Shakespeare, o Rei Ricardo III estava se preparando para
a maior batalha de sua vida. Um exército liderado por Henrique, Conde de
Richmond, marchava contra o seu. A disputa determinaria o novo monarca da
Inglaterra.
Há em livros variados um diálogo apócrifo, porquanto não figura no
texto original de Shakespeare, envolvendo um cavalariço de Ricardo e seu
ferreiro.
“Na manhã da batalha, Ricardo mandou um cavalariço verificar se seu
cavalo preferido estava pronto.
–
Ferrem-no logo –
disse ao ferreiro. – O rei quer seguir em sua montaria à frente dos soldados.
– Terás que esperar
– respondeu o ferreiro.
– Há dias que estou ferrando
todos os cavalos do exército real e agora preciso ir buscar mais ferraduras.
–
Não posso esperar – gritou
o cavalariço, impacientando-se. – Os inimigos do rei estão avançando neste exato
momento e precisamos ir ao seu encontro no campo. Faze o que puderes agora com
o material de que dispões.
O ferreiro, então, voltou todos os esforços para aquela empreitada.
A partir de uma barra de ferro, providenciou quatro ferraduras. Malhou-as o
quanto pôde até dar-lhes formas adequadas. Começou a pregá-las nas patas do
cavalo. Mas depois de colocar as três primeiras, descobriu que lhe faltavam
alguns pregos para a quarta.
– Preciso de mais um
ou dois pregos –
disse ele – e vai
levar tempo para confeccioná-los no malho.
–
Eu disse que não posso esperar – falou, impacientemente, o cavalariço. – Já se ouvem as
trombetas. Não podes usar o material que tens?
– Posso colocar a
ferradura, mas não ficará tão firme quanto as outras.
–
Ela cairá? – Perguntou
o cavalariço.
– Provavelmente não
– retrucou o ferreiro
– mas não posso garantir.
–
Bem, usa os pregos que tens – gritou o cavalariço. – E anda logo, se não o Rei Ricardo se
zangará com nós dois.
Os exércitos se
confrontaram e Ricardo participava ativamente, no coração da batalha. Tocava a
montaria, cruzando o campo de um lado para o outro, instigando os homens e
combatendo os inimigos. “Avante! Avante!”, bradava ele, incitando os soldados
contra as linhas de Henrique.
Lá longe, na
retaguarda do campo, avistou alguns de seus homens batendo em retirada. Se os
outros os vissem, também seguiriam o mau exemplo, e fugiriam da batalha. Então,
Ricardo III meteu as esporas na montaria e partiu a galope na direção da linha
desfeita, conclamando os soldados de volta à luta.
Mal cobrira metade da
distância quando o cavalo perdeu uma das ferraduras. O animal perdeu o
equilíbrio e caiu, e Ricardo foi lançado ao chão.
Antes que o rei
pudesse agarrar de novo as rédeas, o cavalo assustado levantou-se e saiu em
disparada. (Na peça original, o cavalo cai morto, após perder a ferradura e
tropeçar). Ricardo olhou em torno de si. Viu seus homens dando meia-volta e
fugindo, e os soldados de Henrique, o Conde de Richmond, fechando o cerco ao
seu redor. Ele brandiu a espada no ar e gritou:
– Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um
cavalo!
Mas não havia nenhum
por perto. Seu exército estava destroçado e os soldados ocupavam-se em salvar a
própria pele. Logo depois, as tropas de Henrique dominavam Ricardo, encerrando
a batalha.”
E desde então, as
pessoas falam: por falta de um prego, perdeu-se uma ferradura; por falta de uma
ferradura, perdeu-se um cavalo; por falta de um cavalo, perdeu-se uma batalha;
por falta de uma batalha, perdeu-se um reino; e tudo isso por falta de um prego
na ferradura.
Nota: Diálogos acima foram adaptados
do original de James Baldwin, extraídos de William J. Bennett, em “O Livro das
Virtudes”.
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Na cena IV do ato V,
a proclamação: “Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um cavalo!” foram as
últimas palavras de Ricardo III que, jogado no chão e no calor da luta, faz um
derradeiro esforço de reverter o destino de uma batalha perdida, que pôs fim à
dinastia Plantageneta, ensejando a chegada da nova dinastia, a dos Tudor,
entronada por Henrique VII.
Essa peça é uma das
mais conhecidas e encenadas, dentre as tantas do grande bardo inglês, no mundo
inteiro. Conta-se, inclusive, que, em uma dessas representações, quando um ator
que fazia o papel de Ricardo III bradou a famosa frase:
– Um cavalo! Um cavalo! Meu reino por um
cavalo!
Alguém da plateia,
por galhofa, decidiu produzir uma inusitada interlocução, indagando:
– Serve um burro!?
O ator, sem perder a
flegma, e mantendo a compostura, responde ao metido a engraçadinho:
– Serve! Sobe ao palco, por favor!
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Ex-Presidente da Sobrames-Ceará
* Publicado In: SILVA, M. G. C. da (Org.). Ombro, arma! Médicos
contam causos da caserna. Fortaleza: Expressão, 2018. 112p. p.57-61.
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