sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Crônica: “Só esqueço das coisas que não me lembro” ... e outros causos

Só esqueço das coisas que não me lembro

As nuvens despejam ameaças de algum lugar do céu. E as que chegavam à mente do Didato - alcunha de Adeotado Menezes - certamente vinham do andar de cima, porquanto mais intensas. Por um motivo aparentemente sem ventura: buliam nas orelhas do moço. Ah, as "urêa" do Didato! Sabe aquelas bacias de botar massa da mandioca pra preparar a carimã, perto dos 20 quilos? Era a natural dimensão da lapa das estruturas que compõem o sistema auditivo do sujeito.

"Todos encontramos dificuldades no caminho em que transitamos", consolava-lhe a mãe Valtéria. Didato, contudo, refratário a quaisquer desculpas, especialmente na pandemia. Por força dos cuidados da genitora. Usando sempre a máscara tipo PFF2, as orelhas de Didato envergaram 180º em relação ao que fora quando aos 15 anos. Realmente estranho, aquilo, na cabeça miúda dele. As reclamações chegaram a Deus.

- Mãe, Ele esqueceu da minha pessoa!

- Filho, Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas, a perfeição!

- Mas errou na mão quando fez minhas orelhas! Na pandemia espichou ainda mais elas!

- Não fale assim do Deus onipotente, soberanamente justo e bom, eterno, imutável...

- Quer dizer então que eu morrer com essa chapuleta de orelha, mamãe?

Foi quando pela primeira vez na história da humanidade, pronunciou-se a celebérrima frase de que muito se tem utilizado o apóstolo dos cachorros Jair Moraes, ao falar da destinação do homem no Planeta:

- É, filho! Somos todos bicho de urêa!

Os leões da praça

"Feijão Sem Banha", como era conhecido, protagonizou histórias hilárias, hoje contadas a rodo pela negada. Uma delas: cruzava a Praça General Tibúrcio (Praça dos Leões) com o filho Feijãozinho quando o menino, mirando amedrontado aqueles bichos (dois leões e um tigre) tão genialmente esculturados, gritou de pavor:

- Pai, segura minha mão! Vai que eles pulam em riba de nós!

- Fica tranquilo, filho! Esses leões são de estauta!

Na sequência, pegam o ônibus - quando havia parada na Praça José de Alencar - pra seguir em busca de casa. Era boquinha da noite. Nesse tempo, uma das empresas, salvo engano a Fortaleza, estava colocando em circulação alguns carros novos equipados com as tais "borboletas", geringonça fixada no centro do corredor, onde eram feitas as cobranças. A novidade facilitava o serviço do cobrador.

Ocorre que o cobrador da dita linha descera do carro rapidinho pra tomar um café, deixando o equipamento temporariamente travado. O carro tinha já uns 15 passageiros devidamente aboletados. Que fez Feijão Sem Banha, tentando dar uma de esperto? Pulou a borboleta com Feijãozinho no colo. Um gaiatado, vendo a arrumação, gritou:

- Pulando a borboleta, hein? Tem medo de ser preso não?

- Tenho medo nem de cobra, avalí de borboleta!!!

Ripofobia

O "intestino tímido" (parcopresis) aturdia Tica de Dona Mozinha. Nada lhe fazia sair de casa, aos 48 anos. Até que enfim aceitou a ajuda de um psicólogo, que vasculharia o que havia por trás de tão grave apatia, "medonho medo" de conhecer o mundo lá fora. Desabafou já na primeira consulta:

- Doutor, tenho fé em Deus que se eu conseguir obrar fora de casa, serei outra criatura!

Fonte: O POVO, de 12/08/2022. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

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